Sou testemunha permanente da entrada de alguém no mundo oco e vazio da senilidade.
A minha sogra foi durante muitos anos a matriarca da família. O que ela dizia era lei para as filhas e até para o marido.
Quando cheguei à família fiz-lhe alguma frente. Que acredito que não tenha apreciado. Mas acabou por aceitar pois percebeu que não tinha intenções enviezadas apenas o bem comum.
Nos finais dos anos oitenta ao meu sogro foi diagnosticado um tumor na próstata. A minha sogra que sempre conviveu mal com as doenças e com a morte. quando soube da doença do marido andou uma série de dias a chorar pelos cantos.
Deste episódio resultou uma profunda depressão que culminou em muita medicação para lutar contra. Eram dias, semanas na cama sem nunca sair, a não ser para ir à casa de banho.
Com a morte do meu sogro já em 2008 a depressão piorou. E iniciou-se o processo de transferência para a senilidade.
Não vale a pena aqui desenvolver o decadência de alguém que podia e queria tudo. Hoje não sabe o que é uma colher, um garfo ou quem são as filhas a quem geralmente trata por "a senhora isto, a senhora aquilo".
A memória, essa, esgotou-se. Sai de um lado da casa e já não sabe regressar. De quando em vez evoca pai e mãe, mas raramente se lembra do marido com quem viveu mais de meio século.
Uma mulher que foi o esmero do asseio, já nem sabe o que isso é. Também nunca se senta à mesa que diga que gosta da comida.
Dia a dia vou assistindo a um definhar triste. E imparável!
Não fosse o carinho e o cuidado permanente daqueles que a rodeiam provavelmente já teria partido deste Mundo.
Acrescento que no caso presente seria uma dádiva se Deus um dia a levasse. É que ela já não vive!
Vivo diariamente com alguém que está completamente senil. Senta-se à mesa come sozinha, mas é necessário colocar-lhe a colher na mão, já que faca e garfo... já era. Não tem uma conversa de jeito, por vezes não sabe onde está e assusta-nos deveras quando num segundo está sentada na sua cadeira, para no segundo seguinte estar de pé em busca de qualquer coisa que nunca sabe o que é, arriscando-se tantas vezes a cair...
A verdade é que os 90 anos não ajudam. Junte-se uma profunda depressão que durante muitos anos a atirou para uma cama e temos as razões para que a sua mobilidade seja agora reduzida e frágil.
Valem-lhe as filhas que decidiram estar com ela em casa em vez de a enviarem para um lar. E este que se assina como genro... também colabora.
Porém quando olho para aquela criança triste e acabrunhada, que dia a dia vai desaprendendo, fico a matutar no meu futuro e dos receios que este me trará. Por enquanto, e mesmo depois de ter estado infectado com Covid, estou de boa saúde (aparentemente!!!). A cabeça está sempre a trabalhar, nunca tive nenhum estado depressivo e nem vivo ansioso.
Só que de vez em quando olho para o quadro cá de casa e penso: e se fico assim um dia?
Este é assumidamente o meu maior temor. Não só a incapacidade de um dia ser, mas acima de tudo a incapacidade de um dia pensar e decidir.
O herói gaulês Astérix só temia uma coisa: que o céu caísse em cima da sua cabeça.
Não sou gaulês e portanto esse receio não preenche os meus dias. Todavia há um outro temor que me assalta e que de alguma forma obriga-me a pensar no futuro e a escrever este postal. Prende-se com a eventual perda da capacidade cognitiva. Algo que tenho vindo a testemunhar diariamente aqui mesmo em casa com uma "criança" de 89 anos!
Há muito que esta idosa perdeu o sentido dos objectos, nem sabe como elas se chamam. Fala coisas sem nexo e é quase necessário um manual para perceber o que pretende dizer com a sua verbalização.
As pessoas que a rodeiam são-lhe ainda familiares, mas não sabe o nome... Nem das filhas, genros, nem dos netos. Depois a palavra "coisa" serve para traduzir tudo. A memória é algo quase inexistente de tal forma que faz algo para logo a seguir negar que o fez. Nem mesmo a memória mais antiga perdura.
Mas hoje, após o almoço e com a televisão ligada essencialmente para ela, viu no pequeno ecran um simpático cachorro. De repente disse: peixe!
Estava ainda às voltas com o meu café quando escutei o animal e por isso perguntei:
- Onde?
E apontou-me com a cabeça a televisão. Quando olhei para lá dou de caras com um canito. Admirado por ter verbalizado um animal, insisti:
- Aquilo é o quê?
- Peixe... - devolveu.
Definitivamente não me preocupa comer a sopa com um garfo ou o puré com uma faca. Aflige-me, isso sim, deixar de saber quem são os meus filhos, sobrinhos, netos ou amigos.
Como já referi num postal anterior tenho vindo a lidar diariamente com alguém muito próximo e que perdeu o tino da sua vida. Não porque culpa própria obviamente, mas acima de tudo pela avançada idade.
Os anos vividos trazem-nos muita sabedoria, conhecimento, mas também alguns desvios a comportamentos ditos normais. Faz parte!
Não imagino o que dirão estudos médicos sobre este assunto, mas a senilidade é de uma tristeza atroz. Especialmente para quem lida com ela diariamente!
Todos os dias vou assistindo a um definhar lento mas pesaroso da matriarca lá de casa. Já não sabe a que dia estamos ou como se chamam os netos que ajudou a criar. Deixou de saber os nomes de objectos vulgares como um simples garfo ou um mero copo. E dificilmente sabe onde estão os talheres. Chega ao ponto de abrir todos os armários da cozinha á procura de... não sabe dizer!
Quando fala o seu discurso é claramente errático, muitas vezes sem qualquer lógica sendo necessário um tradutor ou um esquema de tentativa e erro para se perceber o que pretende.
Nem mesmo os bisnetos pequenos que a visitam ou a gata sempre brincalhona dão cor e luz à sua vida.
Concluo que no fundo, no fundo a maior tristeza destas vidas de silêncio e angústia é perder-se... o sorriso! Deixar de saber sorrir parece-me assaz triste e penoso. Especialmente para os que a rodeiam.