Hoje é o primeiro dos últimos! O primeiro dia do derradeiro mês do ano de 2023.
Mas é outrossim o mês do Natal, que deveria, repito deveria, ser uma época de alegria, de partilha e acima de tudo de... Paz!
- Paz num Mundo que não pára de se guerrear;
- Paz nos corações dos soldados da vida;
- Paz nos espíritos permanentemente rebeldes;
- Paz nos dias que vamos desfolhando em cada folha de calendário.
O Dezembro é para os católicos o mês do Advento. Um mês de um novo ano litúrgico e que nos remete para a nossa vida resumida nos passos que demos, nas palavras que (mal ou bem) proferimos, nos gestos que assumimos.
Um mês de alegria infantil com a luz, embrulhos, enfeites e mais uma panóplia de artefactos que enchem os nossos olhos.
Dezembro... o mês da consciência de que vivemos num planeta recheado de contradições e perante as quais somos totalmente impotentes para as reverter.
Finalmente não esqueçamos os desvalidos sejam eles sem-abrigo, idosos ou simplesmente gente que vive a vida no limite da incerteza.
O último mês do ano... Dezembro! Um mês de emoções... Todavia nem sempre pelos melhores motivos!
Imagine-se um sem-abrigo de roupas rotas e sujas, barba de muitos dias, mãos mais negras que a própria terra, voz rouca e cavernosa, mente descompensada. Pois… para além da imaginação, este ser existiu e foi protagonista de uma das estórias mais incríveis que me aconteceram, mesmo que no final nem pareça um caso por aí além!
Todos conheciam o Jusoé (nunca soubemos o verdadeiro nome dele, mas era por este epiteto que o tratávamos!). Independentemente do seu estado e situação sempre foi educado, muito educado.
Naquele tempo uma série de notas portuguesas estavam a sair de circulação, essencialmente notas de 20, 50 e 100 escudos. Estas últimas homenageavam três diferentes escritores, a saber: uma com a figura de Camilo Castelo Branco, outra com a de Bocage e a mais recente com a de Fernando Pessoa. As de 50 escudos tinham a figura da Infanta D. Maria.
Uma das minhas funções na caixa foi trocar estas notas, já em desuso, por dinheiro corrente. O que naquela altura equivalia a substituir papel por moedas já que haviam entrado em circulação as moedas e 100 e 200 escudos, para além das de 50 que já existiam havia algum tempo.
Entretanto o nosso amigo Jusoé tinha, por vezes, a estranha mania de querer as notas velhas, dando-nos em troca as moedas correntes. Ora como sabíamos que o sótão daquele cavalheiro era uma confusão, nunca lhe negávamos um pedido.
Naquele dia lá me apareceu ele, de negro vestido que nem tição queimado. Ou porque a roupa o era escura ou porque estava deveras suja. Aproximou-se como sempre da beira do balcão e naquela sua voz rouca e quase gutural, pediu:
- Bom dia… arranjava-me umas notitas do Fernando Bocage?
Percebi o erro, mas não o emendei. Peguei no dinheiro que me entregou e devolvi-lhe as notas velhas.
- Aqui tem…
- Obrigadinho… - e partiu contente.
No fim do dia, ao fechar a caixa, percebi que me faltavam 50 escudos. Refiz as contas e o saldo mantinha-se negativo. Acertei o saldo com dinheiro meu e fechei a caixa.
Estaria, no entanto, guardado para o dia seguinte a maior surpresa. Nesse dia, a meio da manhã entrou novamente o Jusoé pelo balcão, dirigiu-se à minha caixa e entrega-me de supetão uma moeda.
- Ontem fiquei com este dinheiro a mais…
Espantado com a atitude daquele sem-abrigo ainda escutei Josué dizer enquanto me virava as costas e saía:
Foi com frio permanente que este fim de semana se passou.
Valeu ontem a lareira acolhedora (ai que saudades que eu já tinha de um fogo crepitante!), e hoje o ar condicionado que está há horas a debitar calor para dentro de casa.
Nem imagino como estarão a sentir-se os sem-abrigo neste momento... De todo!
Todos os dias me cruzo com um homem, provavelmente da minha idade. Tem o cabelo cinza, barba por aparar, calça umas sandálias gastas e veste um casaco que invarialvelmente coloca por cima das costas.
Todos os dias vejo-o a puxar um pequeno cesto de compras com rodas (primórdios dos troles?). Tem o aspecto triste de quem vive na rua mas aquela cara não em é estranha. Tenho quase a certeza de o ter visto algures na minha vida noutro local.
Todos os dias penso em escrever algo sobre este sem-abrigo. Esta manhã aguardava eu que o sinal passasse a verde quando reparo que atravessa a avenida sem quaisquer cuidados com os carros. Pára junto a um caixote do lixo e espreita. Está a um metro de mim. Consigo perceber o interesse naquele espaço. Larga o carro, enfia o braço e retira uma pequena caixa de piza. Abre-a e esta quase cheia com fatias. Fecha-a e coloca no seu cesto e parte para a sua volta.
Todos os dias será esta a sua sina? Procurar no lixo algo para comer? Neste país?
Gosto de ir àquele local comer. Sereno, calmo e com umas tostas em pão alentejano fantásticas. As sopas também são (muito) saborosas.
Hoje fui lá almoçar. A costumada tosta, bem passada, a bela sopa e um café!
Na avenida o trânsito flui com relativa normalidade. No passeio duas mesas e respectivas cadeiras onde nos podemos sentar ao ar livre. No entanto prefiro o recato do interior mesmo que seja, por opção, ao balcão.
Surge da rua um homem com alguma idade. Cabelo grande, barba e bigode em desalinho. Veste uma espécie de gabardine cinza. Parece ser um sem-abrigo dos muitos que calcorream a cidade. Mostra-se à porta do estabelecimento.
O patrão sabe ao que ele vem e pergunta-lhe se quer sopa. Não oiço a resposta mas vejo o prato fundo a ser carregado com conchas repletas. E um pão.
Tudo servido como se de um cliente pagante se tratasse. Individual de papel, pão num pires, guardanapo e colher. Tudo colocado na mesa com o respeito a que tem direito.
O homem come o pão misturado na sopa quente e no final vem à porta agradecer, quase em surdina. E parte!
Gestos que me comoveram. Não foi só a sopa posta ao dispor do homem, de forma graciosa mas a maneira como aquele sem abrigo foi tratado. Com todo o respeito!
Num mundo tão economicista, tão pouco preocupado com o ser humano, tão absorvido nas suas idiotices, observar estes gestos mostra que há quem respeite e perceba que a vida tem muitas curvas e demasiadas lombas e nem sempre é uma linha recta.
Este foi um perfeito exemplo de solidariedade anónima!