Bloguers improváveis: RUTE PASSOS
A amizade tem destas coisas: é inesquecível e inquestionável!
Não obstante os trilhos que cada um de nós palmilhou na vida, a verdade é que houve sempre um elo inquebrável que nos ligou.
Nunca precisámos de o dizer. Nunca necessitámos de o provar.
Basta saber que o outro estará lá... Sempre e de forma incondicional!
A sua escrita sempre foi superlativa. Um diamante das letras bem delapidado, todavia (quase) sempre muito escondido.
Recentemente lancei-lhe o tal desafio de colaborar neste blogue, nem que fosse por uma vez. Pois bem esta escritora, de quem sou amigo há mais de 40 anos, aceitou o repto e escreveu assim…
Reencontro
Amanheceu lentamente, como sempre. O céu acinzentou, clareou, o sol veio com o chamado insistente dos pássaros. As silhuetas dos pinheiros foram-se desenhando com nitidez crescente no recorte da janela. O tempo parou.
Respirou fundo e levantou-se. O tempo não pára, não pode parar, há relógios e horários, é sempre preciso fazer qualquer coisa, mais uma, sempre a importância da inutilidade urgente do pequeno-almoço, do autocarro, da loiça, da aula inerte, do pó que assenta sempre sobre as coisas com a autoridade catedrática do que tem de ser.
O sobreiro acordou com o saltitar dos verdilhões e dos pardais num corropio primaveril. Este ano, pensou, os corvos já não vêm conversar todos os dias. Sentiu a falta do crocitar distinto de cada um como se de amigos se tratasse. Se calhar eram mesmo amigos, faziam-lhe a companhia necessária para sorrir e prosseguir o dia com algum sentido. Qual o que chegaria primeiro no dia seguinte? Iria para cima do pinheiro ou para o telhado? Quem voaria primeiro? Agora, são só os verdilhões no sobreiro e a tontice dos pardais em revoada. Há mais casas e mais gente, o pinhal do lado de lá da estrada é mais acolhedor. Ou a serra. Depois da serra havia o mar…Mar… sentiu a falta do mar como uma bofetada brusca. Memória de cheiro, reflexo de luz, um arrepio vão.
Foi para o chuveiro com os gestos mecânicos de sempre. Sem dar por nada aprontou-se, falou com os outros, pôs a casa em marcha e viu a estranha do costume no espelho, de relance e sorriso sobrevivente e apático, a pulverizar-se com o perfume fingido de flores de um qualquer jardim.
Olhou pela outra janela, voltou aos pássaros num segundo. Mais tarde, já com o sol alto e sem ninguém à janela, hão-de perseguir-se e voar entre os ramos em lutas juvenis. Nessa altura a casa estará vazia, reduzida à sua essência. Casa banal. Semi-urbana. Habitada por fantasmas de gente que não vive, que pernoita e prossegue para o dia seguinte, um atrás do outro sem sentido. Gente como ela. Respiram, olham, movem-se, falam, deixam passar os minutos como se fossem anos e os anos como segundos escorrem-lhes entre os dedos vazios.
Mais um, mais outro, mais outro ainda. E o sol e a chuva falam com a casa vazia, onde todos fazem as coisas importantes de todos os dias. Fazem tudo, com a pressa necessária e com a precisão eficaz dessa urgência de prosseguir, de alcançar o amanhã. Fazem tudo menos sentir. E quando sentem qualquer coisa correm a proteger-se, não vão olhar uns para os outros e descobrir que já quase não existem para além das coisas que os cobrem, que os enfeitam como troféus e que o amanhã desapareceu.
Naquele dia, tal como em todos os outros, apeteceu-lhe ficar em casa e falar também com o sol, com a chuva, com o tempo que não existe. Não fazer nada. Roubar a alegria dos pássaros e sorrir e chorar todas as coisas que não quis sentir ao longo dos anos. Olhar a estranha no espelho e perguntar-lhe se ainda era ela. Perguntar-lhe o que fazia ali todos os dias, agora que já não havia magia. Perguntar-lhe se a magia tinha fugido porque ela a escorraçara diligentemente em cada gesto, em cada adiamento, em cada “agora não, que tenho de acabar este trabalho”. Fugira de cada vez que não fora à praia olhar o mar e as ondas? Em cada vez que não chorara de saudades do Tejo ao pôr-do-sol, em cada vez que não tivera tempo de ir passear no cacilheiro só porque precisava de ver a espuma correr o casco do barco? Ou de cada vez que adormecera de cansaço sem sair para cheirar a terra molhada do aguaceiro e sem ver os relâmpagos cortar o céu? Ou em cada beijo perdido? Ou em cada mergulho que não dera porque já era tarde para o almoço de um outro alguém qualquer? Todos os adiamentos, hoje, pesavam o chumbo de não ter vivido. Não sabia como chegara ali. Onde estava a vida que lhe pertencia? Será que havia alguém para além do enorme cansaço, do desalento e da solidão visceral que o espelho devolvia? Para onde fora ela? Quem era a pessoa ali reflectida? Onde estavam os sonhos?
Tal como tudo na sua vida, via invólucros, bem embrulhados com cuidado, impecáveis. Mas e se as caixas estivessem todas vazias de uma espera inconsequente em nome de coisa nenhuma? Havia várias caixas que embrulhara com enlevo. Havia a do seu ninho de origem, já caída e roída da traça, que alguém lhe havia dado para guardar e preservar porque precisava de espaço para prosseguir caminho. E ela guardara-a, por ilusão de lá vir a encontrar algum sonho perdido. Havia a caixa grande, a da família que construíra, que começara a ocupar todo o espaço. Acabara por lá pôr dentro, sem saber porquê, todas as outras: a dos sonhos pessoais, a das paixões, a da escrita, a da aventura profissional, a dos sentimentos pessoais e amizades primevas. E agora, nesses pequenos compartimentos só restava pó. E, da caixa grande, que ela julgara partilhar com os outros habitantes da casa, só restava o papel de embrulho, ainda com brilhos. Também estava quase vazia. Já o sabia há algum tempo mas evitara sempre ir verificar. Ensinara todos tão bem a serem eficazes como ela que se calhar também já não eram pessoas. Não queria sentir, não podia dar-se ao luxo de sentir, senão parava. Podia não querer sair no dia seguinte, nem correr para o chuveiro, nem usar o perfume. Podia querer apenas ir à praia e ficar por lá, dar um mergulho interminável entre o verde e o azul e ir à procura da menina do mar, do polvo, do caranguejo e do peixe. E rir como eles, entre as marés. Esquecer que havia coisas para fazer, esquecer que tinha crescido e envelhecido e que todos contavam com ela e com e sua eficácia de relógio suíço fora de moda. Esquecer as mentiras. Esquecer-se das horas, esquecer-se dos desejos dos outros tal como os outros se esqueciam dos dela. Esquecer-se de ser útil por medo de, não sendo útil, ficar só. Afinal a solidão estava ali mesmo, e a fuga de si própria apenas tornava mais pateticamente estúpida a situação. Nos tempos em que existira sempre enfrentara tudo de frente. Porque não agora? Estava só porque não já sentia, porque afastara pessoas e ideias que lhe haviam importado para corresponder a desejos e sonhos alheios. Mais uma vez, com medo de se magoar e de ficar só, rasgara tudo o que fora a sua essência por uma existência nesta caixa agora meio vazia.
Às vezes, como se um resto de magia sobrevivesse, acordava do torpor, como agora, e sentia o cheiro do pó das caixas pequenas e rezava para que essa poeira a envolvesse e lhe devolvesse o dom de sonhar. A solidão fora sempre uma companheira suportável, outrora. Deixava-a sonhar à vontade, era um refúgio. Se calhar era o tal ninho que procurava desesperadamente. Se calhar a solidão era a sua essência, a sua existência. Não fazia mal estar só ou sentir-se só. Ter pudor de falar de si. Gostar de ver as nuvens. Gostar do pó dos arquivos e dos papéis velhos. E dos livros. E dos amigos mais ou menos esquisitos e imperfeitos. Não era preciso pertencer a todo o custo, ser aceite a todo o custo, ser vista a todo o custo. Se calhar era só voltar a ser, dentro de si própria o bichinho do mato tão criticado da sua infância. Fazer o que os outros acham disparates. Agarrar a solidão como um presente. Ser invisível. Manter os poucos amigos de alma pura que a vida não afastara e que de vez em quando lhe relembravam a importância do pó das caixas pequenas. Alimentar as raspas dos amores serenos que resistiram ao quotidiano e que ainda povoam a caixa grande. Descobrir num e noutro olhar ou palavra meio dita, partilhas curtas e verdadeiras, breves momentos mágicos que tornassem tudo de novo possível, até encher, de uma nova forma a caixa grande e todas as outras.
Lá fora, dois pardais bulhavam nas laranjeiras.
- Estamos atrasados! Olha as horas!
Mecanicamente, como nos outros dias, largou a alma e saiu a correr.