Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

LadosAB

Espaço de reflexões, opiniões e demais sensações!

Espaço de reflexões, opiniões e demais sensações!

Bloguers improváveis: RUTE PASSOS

A amizade tem destas coisas: é inesquecível e inquestionável!

Não obstante os trilhos que cada um de nós palmilhou na vida, a verdade é que houve sempre um elo inquebrável que nos ligou.

Nunca precisámos de o dizer. Nunca necessitámos de o provar.

Basta saber que o outro estará lá... Sempre e de forma incondicional!

A sua escrita sempre foi superlativa. Um diamante das letras bem delapidado, todavia (quase) sempre muito escondido.

Recentemente lancei-lhe o tal desafio de colaborar neste blogue, nem que fosse por uma vez. Pois bem esta escritora, de quem sou amigo há mais de 40 anos, aceitou o repto e escreveu assim…

Reencontro

Amanheceu lentamente, como sempre. O céu acinzentou, clareou, o sol veio com o chamado insistente dos pássaros. As silhuetas dos pinheiros foram-se desenhando com nitidez crescente no recorte da janela. O tempo parou.

Respirou fundo e levantou-se. O tempo não pára, não pode parar, há relógios e horários, é sempre preciso fazer qualquer coisa, mais uma, sempre a importância da inutilidade urgente do pequeno-almoço, do autocarro, da loiça, da aula inerte, do pó que assenta sempre sobre as coisas com a autoridade catedrática do que tem de ser.

O sobreiro acordou com o saltitar dos verdilhões e dos pardais num corropio primaveril. Este ano, pensou, os corvos já não vêm conversar todos os dias. Sentiu a falta do crocitar distinto de cada um como se de amigos se tratasse. Se calhar eram mesmo amigos, faziam-lhe a companhia necessária para sorrir e prosseguir o dia com algum sentido. Qual o que chegaria primeiro no dia seguinte? Iria para cima do pinheiro ou para o telhado? Quem voaria primeiro? Agora, são só os verdilhões no sobreiro e a tontice dos pardais em revoada. Há mais casas e mais gente, o pinhal do lado de lá da estrada é mais acolhedor. Ou a serra. Depois da serra havia o mar…Mar… sentiu a falta do mar como uma bofetada brusca. Memória de cheiro, reflexo de luz, um arrepio vão.

Foi para o chuveiro com os gestos mecânicos de sempre. Sem dar por nada aprontou-se, falou com os outros, pôs a casa em marcha e viu a estranha do costume no espelho, de relance e sorriso sobrevivente e apático, a pulverizar-se com o perfume fingido de flores de um qualquer jardim.

Olhou pela outra janela, voltou aos pássaros num segundo. Mais tarde, já com o sol alto e sem ninguém à janela, hão-de perseguir-se e voar entre os ramos em lutas juvenis. Nessa altura a casa estará vazia, reduzida à sua essência. Casa banal. Semi-urbana. Habitada por fantasmas de gente que não vive, que pernoita e prossegue para o dia seguinte, um atrás do outro sem sentido. Gente como ela. Respiram, olham, movem-se, falam, deixam passar os minutos como se fossem anos e os anos como segundos escorrem-lhes entre os dedos vazios.

Mais um, mais outro, mais outro ainda. E o sol e a chuva falam com a casa vazia, onde todos fazem as coisas importantes de todos os dias. Fazem tudo, com a pressa necessária e com a precisão eficaz dessa urgência de prosseguir, de alcançar o amanhã. Fazem tudo menos sentir. E quando sentem qualquer coisa correm a proteger-se, não vão olhar uns para os outros e descobrir que já quase não existem para além das coisas que os cobrem, que os enfeitam como troféus e que o amanhã desapareceu.

Naquele dia, tal como em todos os outros, apeteceu-lhe ficar em casa e falar também com o sol, com a chuva, com o tempo que não existe. Não fazer nada. Roubar a alegria dos pássaros e sorrir e chorar todas as coisas que não quis sentir ao longo dos anos. Olhar a estranha no espelho e perguntar-lhe se ainda era ela. Perguntar-lhe o que fazia ali todos os dias, agora que já não havia magia. Perguntar-lhe se a magia tinha fugido porque ela a escorraçara diligentemente em cada gesto, em cada adiamento, em cada “agora não, que tenho de acabar este trabalho”. Fugira de cada vez que não fora à praia olhar o mar e as ondas? Em cada vez que não chorara de saudades do Tejo ao pôr-do-sol, em cada vez que não tivera tempo de ir passear no cacilheiro só porque precisava de ver a espuma correr o casco do barco? Ou de cada vez que adormecera de cansaço sem sair para cheirar a terra molhada do aguaceiro e sem ver os relâmpagos cortar o céu? Ou em cada beijo perdido? Ou em cada mergulho que não dera porque já era tarde para o almoço de um outro alguém qualquer? Todos os adiamentos, hoje, pesavam o chumbo de não ter vivido. Não sabia como chegara ali. Onde estava a vida que lhe pertencia? Será que havia alguém para além do enorme cansaço, do desalento e da solidão visceral que o espelho devolvia? Para onde fora ela? Quem era a pessoa ali reflectida? Onde estavam os sonhos?

Tal como tudo na sua vida, via invólucros, bem embrulhados com cuidado, impecáveis. Mas e se as caixas estivessem todas vazias de uma espera inconsequente em nome de coisa nenhuma? Havia várias caixas que embrulhara com enlevo. Havia a do seu ninho de origem, já caída e roída da traça, que alguém lhe havia dado para guardar e preservar porque precisava de espaço para prosseguir caminho. E ela guardara-a, por ilusão de lá vir a encontrar algum sonho perdido. Havia a caixa grande, a da família que construíra, que começara a ocupar todo o espaço. Acabara por lá pôr dentro, sem saber porquê, todas as outras: a dos sonhos pessoais, a das paixões, a da escrita, a da aventura profissional, a dos sentimentos pessoais e amizades primevas. E agora, nesses pequenos compartimentos só restava pó. E, da caixa grande, que ela julgara partilhar com os outros habitantes da casa, só restava o papel de embrulho, ainda com brilhos. Também estava quase vazia. Já o sabia há algum tempo mas evitara sempre ir verificar. Ensinara todos tão bem a serem eficazes como ela que se calhar também já não eram pessoas. Não queria sentir, não podia dar-se ao luxo de sentir, senão parava. Podia não querer sair no dia seguinte, nem correr para o chuveiro, nem usar o perfume. Podia querer apenas ir à praia e ficar por lá, dar um mergulho interminável entre o verde e o azul e ir à procura da menina do mar, do polvo, do caranguejo e do peixe. E rir como eles, entre as marés. Esquecer que havia coisas para fazer, esquecer que tinha crescido e envelhecido e que todos contavam com ela e com e sua eficácia de relógio suíço fora de moda. Esquecer as mentiras. Esquecer-se das horas, esquecer-se dos desejos dos outros tal como os outros se esqueciam dos dela. Esquecer-se de ser útil por medo de, não sendo útil, ficar só. Afinal a solidão estava ali mesmo, e a fuga de si própria apenas tornava mais pateticamente estúpida a situação. Nos tempos em que existira sempre enfrentara tudo de frente. Porque não agora? Estava só porque não já sentia, porque afastara pessoas e ideias que lhe haviam importado para corresponder a desejos e sonhos alheios. Mais uma vez, com medo de se magoar e de ficar só, rasgara tudo o que fora a sua essência por uma existência nesta caixa agora meio vazia.

Às vezes, como se um resto de magia sobrevivesse, acordava do torpor, como agora, e sentia o cheiro do pó das caixas pequenas e rezava para que essa poeira a envolvesse e lhe devolvesse o dom de sonhar. A solidão fora sempre uma companheira suportável, outrora. Deixava-a sonhar à vontade, era um refúgio. Se calhar era o tal ninho que procurava desesperadamente. Se calhar a solidão era a sua essência, a sua existência. Não fazia mal estar só ou sentir-se só. Ter pudor de falar de si. Gostar de ver as nuvens. Gostar do pó dos arquivos e dos papéis velhos. E dos livros. E dos amigos mais ou menos esquisitos e imperfeitos. Não era preciso pertencer a todo o custo, ser aceite a todo o custo, ser vista a todo o custo. Se calhar era só voltar a ser, dentro de si própria o bichinho do mato tão criticado da sua infância. Fazer o que os outros acham disparates. Agarrar a solidão como um presente. Ser invisível. Manter os poucos amigos de alma pura que a vida não afastara e que de vez em quando lhe relembravam a importância do pó das caixas pequenas. Alimentar as raspas dos amores serenos que resistiram ao quotidiano e que ainda povoam a caixa grande. Descobrir num e noutro olhar ou palavra meio dita, partilhas curtas e verdadeiras, breves momentos mágicos que tornassem tudo de novo possível, até encher, de uma nova forma a caixa grande e todas as outras.

Lá fora, dois pardais bulhavam nas laranjeiras.

- Estamos atrasados! Olha as horas!

Mecanicamente, como nos outros dias, largou a alma e saiu a correr.

Mais sobre mim

foto do autor

Posts mais comentados

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Os meus livros

Des(a)fiando Contos
Quatro desafios de escrita

Os Contos de Natal

2021
2022

Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D