Sempre gostei de guardar recordações, Sejam os bilhetes de concertos a que assisti, os museus que visitei, as viagens que fiz.
Também guardo muitos dos papéis onde principiei a escrever os primeiros textos. Um deles é um velho caderno de argolas, pautado e onde estão escritas as minhas primeiras crónicas, que mais tarde seriam publicadas num jornal regional. Muitos blocos, muitas folhas soltas, muitas ideias alinhavadas, mas poucos textos realmente escritos.
No entanto guardei tudo... para de vez em quando revisitar com saudade e nostalgia. Saudade de um tempo em que era muito mais novo, com estaleca para dar e vender. Nostalgia por tantos encontros, almoços, jantares, reuniões em minha casa ou em casa de outros. Queríamos mudar o Mundo, os pensamentos, as mentalidades acabadas de sair de uma longa ditadura.
Hoje os nossos computadores guardam tudo no mesmo espaço físico. Não há cadernos, blocos, folhas simples onde se rabiscava qualquer coisa e ali ficava a aboborar...
Entre aquele tempo e agora passaram mais de 40 anos. Quase meio século... O tempo realmente voa e nunca pára.
Vai daqui há uma questão que formulo a mim mesmo: como será daqui a outros 40 anos?
E mais importante de tudo: como serei recordado pelos meus?
Hoje fui a uma "grande superfície" (sinceramente parece-me pouco feliz este jargão comercial!!!) levantar uma encomenda que havia feito através do portal da empresa. Compras no carro lembrei-me de ir buscar pão. Percorro os largos corredores estreitados por pequenas lojas de brique-à-braque e entro na enorme loja.
A primeira coisa com que me deparo são expositores de cadernos de todas as cores, géneros e feitios, malas e mochilas, lápis, canetas, colas e demais utensílios escolares. Só que o meu primeiro sentimento ao ver aquela feira foi de puro e assumido terror. Parece que recuei meio século!
Acabado que foi o meu secundário não pretendi voltar à escola e fui trabalhar. No entanto, dentro do meu pobre espírito permaneceu, pelos vistos até hoje, um virus anti-escola que desenvolvi desde aquela primária (eu sei muito em quem mo implantou, originando nunca ter querido estudar e jamais serei capaz de lhe perdoar!). Daí a sensação de enormíssimo desconforto.
Foram breves aqueles segundos, porém demasiado intensos. Tão fortes que saí da loja em passo estugado e sem comprar pão. Ficará para amanhã...
Definitivamente prefiro desta loja, por exemplo, a feira de queijos e enchidos!
Ontem iniciaram cá por casa as anuais limpezas grandes. Se antigamente tinha uma colaboradora que o fazia por mim, desde que aquela se reformou acabei por assumir parte desse trabalho. Enfim... coisas sem gracinha nenhuma, mas que têm de ser feitas... Dizem...
Ora ontem calhou-me pegar numa gaveta e fazer uma escolha ao material que lá encontrei. Muita correspondência, recibos de vencimento antigos, fotografias velhas, papéis sem interesse nenhum a não ser para mim.
Mas também achei pequenos tesourinhos. A imagem seguinte refere um deles.
Decorriam os anos 80 e fui convidado a fazer parte de uma lista para a eleição de uma nova comissão de trabalhadores da empresa.
Houve uma normal campanha que me levou a passear pelo país a visitar agências. Numa dessas viagens parámos em Coimbra, a bela cidade estudantil. À hora do almoço escolhemos um restaurante para aí matar a fome.
Em cima da mesa um jornal regional que eu peguei com curiosidade. E foi neste pedaço de imprensa que encontrei o anúncio do recorte. Que rapinei à socapa.
A verdade é que sempre que encontro e leio este pedaço de papel amarelecido pelo tempo, nem consigo sequer imaginar o que terá acontecido na tal tarde...
Há muitos, muitos anos conheci na aldeia um homem sui generis, mesmo para aquela época. O nosso primeiro encontro foi na estrada quando eu, um rapazola ainda muito imberbe, passava os dias rua acima rua abeixo na minha bicicleta. Como andava sempre a "assapar" certa vez quase me esbardalhava contra o seu enorme rebanho de cabras. Pedi-lhe desculpa, mas aquela figura do ti' António Costa chamou-me à atenção. Já muito entrado na idade, percebi-lhe na voz uma certa deficência: era fanhoso!
A verdade é que esse foi o nosso primeiro diálogo. Alguns outros se seguiriam, poucos, mas de um deles ficou uma lição de filosofia para a minha vida. Quiçá a primeira e que anos mais tarde consegui claramente entender.
O ti' António era um pobre homem a quem ninguém lhe conhecia amizades, mas ele também não as favorecia. Nunca ia à taberna e se alguém por acaso o convidava para beber um copito, ele respondia:
- Não vou, depois queres que pague eu...
Se insistiam lá ia, mas escutava logo um assobio colectivo:
- O ti' António na tasca? Quem será o desgraçado?
Na verdade o velho pastor vivia numa casa que mais parecia um pardieiro. Não tinha água, nem casa de banho e muito menos electricidade. O que comia poucos sabiam, mas não deveria variar muito de batatas, tomates ou feijão que ele fazia questão de cultivar.
Um dia percebi que o seu parco rendimento financeiro advinha da venda do leite a uma cunhada e de alguns cabritos e cabras mais velhas, para o talho. Mas se recebia pouco, também era verdade que não gastava uma moeda.
Das últimas conversas que tive com ele e perante a minha insistência sobre o que fazer com o dinheiro ele deu-me esta lição:
- Quem te dera a ti, meu rapaz, gostares tanto de estrafegar o teu dinheiro, como eu gosto de poupar o meu!
Esta frase que na altura entrou a 100 e saiu a 200, só muitos anos mais tarde, como já observei acima, se tornou numa assumida filosofia de vida.
Transportada para o dia de hoje aquela frase traduz com uma simplicidade quase absurda o que deveria ser a nossa vida: fazer unicamente o que gostamos, sem termos vergonha nem receio.
Ti´António foi encontrado morto por uma irmã, no chão imundo da casa, rodeado de todo o género de bicharada peçonhenta.
Ontem já noite encontrei numa velha pasta centenas de páginas com textos manuscritos. Uns apenas iniciados, outros terminados e que nunca viram a luz do dia, outros já transcritos e publicados noutro blogue.
Gostei de me rever nestas páginas. Uma letra diferente, uma escrita ingénua e pouco trabalhada, ideias tontas.
Depois recortes de jornais com textos meus, já amarelecidos pela patine do tempo. Alguns poemas, muitos contos e até pasme-se a base para um romance já com muitas páginas escritas.
Para muitos irá ser necessário coragem para pegar em cada folha e trancrever os que ainda não o foram. Dar-lhes um toque actual, pois já não escrevo como naquele tempo.
É nesta transição que reside parte da minha enorme dúvida... Será que vale a pena transcrevê-los tal como estão só com umas ligeiras correções? Ou será melhor pegar apenas na ideia e reescrever tudo de início!
Na verdade, na verdade eu sou todos estes papéis... E calculo que devem haver mais, perdidos nalguma gaveta.
Mas fosse eu um daqueles escritores de renome "aquém e além fronteiras" tudo isto seguiria para um qualquer museu ou biblioteca. Assim... ainda não sei bem o que fazer. Provavelmente deixar tudo como está!
Tenho hoje para comigo, essencialmente para aquilo que escrevo, uma exigência quase fundamentalista, já que quando me iniciei na escrita ligava pouco à forma e ao conteúdo. Escrevia só porque sim ou porque sentia necessidade.
Decorreram muuuuuuuuitos anos e nestes vivi muitas vidas e a vida viveu também de mim, para agora aqui chegar, olhar para a estante e ver lá dois singelos livros com o nome deste autor na lombada. Em termos absolutos será pouca coisa, mas em termos muito pessoais é algo que conquistei.
Publicar um livro não é difícil nem extremamente caro (também depende do número de exemplares impressos!!!), mas para mim tornou-se numa bravata interior enorme. Que textos escolher e dos escolhidos qual deles deverá ser o primeiro? Devo emendar muito as prosas ou deixá-las como foram publicadas? Reescrever aqueles textos mais pobres ou mantê-los, até para que se percebe como foi a nossa evolução?
Diversas questões que ainda hoje coloco a mim mesmo e para as quais não tenho uma resposta certa... nem errada!
Como já escrevi acima publicar hoje um livro tornou-se uma coisa (quase) banal. Todavia arriscar um segundo parece algo muito mais arriscado. Se não vejamos: a matriz original da minha escrita será sempre o primeiro livro. No entanto uma segunda aventura obrigou-me a ser mais competente, a arriscar mais, a retirar de mim novas valências de escrita, isto é, a elevar a fasquia do anterior. Ainda estou para saber se consegui...
Por isso escrever é mesmo um desafio permanente, mas também com distãncia, como se fosse um jogo de xadrez onde sacrifico agora uma torre para ganhar diversos lances à frente um xeque-mate.
Valho-me nestes exercícios de publicação dos amigos que por aqui fui, em boa hora, arregimentado. Eles são inocentemente culpados de tudo isto que tenho feito acontecer! Dos blogues, dos desafios, dos livros e das reacções. Porque sempre me incentivaram e me mostraram o caminho, mesmo sem que disso tivessem verdadeira consciência.
No fundo é para eles todos este postal!
Com receio de olvidar algum, não divulgo os seus nomes, mas todos eles sabem (oh se sabem!) como os admiro e como lhes estou eternamente grato.
Era aluno repetente do 4º ano (hoje 8º ano de escolaridade) do Liceu D. João de Castro (secção de Almada).
Já usava óculos híper graduados e as minhas alcunhas advinham disso.
A escola era monosexual, porque turmas mistas só a partir do 6º ano (hoje 10º).
Filho único de um cabo da Marinha de Guerra Portuguesa e de uma doméstica.
Era quinta feira e o tempo estava cor de chumbo.
O meu pai antes de entrar na Base onde prestava serviço soube do golpe de estado no mercado onde se fora aviar de mantimentos para levar para a messe. Tendo em conta a informação recebida comprou alguns víveres deixou-os em casa e partiu célere para a Base Naval de Lisboa, no Alfeite, deixando a indicação para não sairmos de casa.
Começamos a escutar, em repetição numa velha telefonia, o comunicado lido pelo locutor Luís Filipe Costa onde apelava à calma!
Acabei por ir ter com os meus amigos que estavam ao portão do prédio.
À tarde a RTP passou uma série de nome Daktari. A preto e branco.
Depois vi um comunicado da Junta de Salvação Nacional. A branco e preto!
Finalmente deste dia lembro-me apenas disto.
Mas nem sabia que estava a assistir a uma mudança radical na história de Portugal!
Ao invés de muitos que conheço o meu passado não é isento de erros. Quiçá maior terá sido não tirar um curso superior. Mas enfim não o fiz naquele tempo e agora é tarde demais.
Fumei muito, bebi e comi em excesso, estrafeguei dinheiro até mais não. Abusei em quase tudo. Todavia nunca me senti tentado pela droga, por considerar que ela não resolveria nenhum dos meus problemas de antanho.
Tal como durante toda a minha vida de trabalho, com altos e baixos, também nunca usei medicamentação para lidar com os meus insucessos. Enfrentei estes de frente e ultrapassei-os com realismo e coragem.
Actualmente, aqui e ali, vamos lendo notícias e relatos de jovens cada vez mais depressivos, fruto, a maioria, de horas e horas de isolamento.
É inegável que as novas tecnologias trouxeram-nos melhores e maiores capacidades de comunicação, mas curiosamente ou talvez não, cada vez falamos menos. Ou porque as televisões entram em todas as casas (até nas casas de banho) e retiram às famílias o único pedaço em que poderiam dialogar, ou porque as redes sociais são mais importantes que a tribo familiar, ou porque um qualquer jogo dá-nos mais alegrias ou torna-nos melhor que os outros.
A solidão nas actuais gerações é já uma evidência! Com consequências altamente nefastas nos relacionamentos das pessoas e na própria saúde mental. Também será verdade que a recente pandemia não veio ajudar, bem pelo contrário pois a virtualidade das relações humanas passou a ser uma constante.
Regressando ao meu passado confesso que conversei muito, a maioria das vezes até demais, mas a verdade é que naquele tempo, não obstante ser filho único, nunca me senti isolado ou sózinho! Talvez gostasse mais desta ou daquela companhia (faz parte!!!), mas senti-me sempre bem acompanhado!
Costuma-se dizer que a idade é apenas um número. Tenho de concordar já que sou diariamente confrontado com gente muito mais nova que eu em idade porém muito mais velha em ideias e preconceitos. Tal como dou conta do contrário onde acções e pensamentos são de alguém muito novo embutido num corpo de idoso. Portanto temos de tudo um pouco na nossa actual sociedade.
Recuemos agora mais de meio século e aterremos nos finais dos anos 60. O Woodstock acabara de acontecer e eu tinha acabado a escola primária, libertando-me de uma vez por todas das garras da professora Maria Delfina que mais me prejudicou que ajudou, naquele dealbar de vida escolar!
Entrei numa escola em Almada, para frequentar o Ciclo Preparatório que correspondeu a dois anos, antes de optarmos pelo Liceu, Escola Comercial ou Escola Industrial (outros tempos de verdadeira Educaçáo, pedindo já desculpa aos actuais elementos deste ramo tão importante da nossa actual sociedade pela forma quase saudosista como referi aquele tempo!).
Da minha casa à escola eram uns bons quilómetros. Assim aos 10 anos, fizesse sol, chuva ou frio, lá ia eu apanhar um autocarro. Nesse tempo vivia no Laranjeiro mesmo encostado ao Feijó e todos os dias, manhã cedo, andava perto de um quilómetro para apanhar um autocarro que me deixaria na Cova da Piedade.
Naquela paragem havia sempre muita gente, mas eu só apanhava o autocarro que viesse ou de Paio Pires ou do Seixal porque eram os únicos que cobravam apenas meio-bilhete a quem tivesse menos de 12 anos. Nesse tempo custava cada viagem quatro tostões (hoje 0,0019951916 euros). Parece irrisório, mas ao fim do mês era dinheiro. Portanto havia que poupar. Outros tempos!
Regressemos agora aos dias de hoje e a uma viagem rápida que fiz a Lisboa. Poderia ter optado pelo Metropolitano, mas preferi o comboio. Fui a uma máquina e investiguei os tipos de bilhetes que apresentavam quando descobri a tipologia "Idoso". Uma explicação breve dizia que quem tivesse mais de 65 anos pagaria metade do bilhete. Assim fiz e na verdade ida e volta custou 1,80 euros enquanto um bilhete normal simples custa 1,75 euros (não é metade mas quase!!!).
Posto todo este vai-vem temporal, aceito que a idade será mesmo um número! Ou será mais assertivo dizer que a idade é apenas um valor?
Um funeral é (quase) sempre um momento triste e lúgubre. Então se for numa aldeia, pior um pouco, porque há sempre aquelas carpideiras que ilustram sonoramente a suposta tristeza de amigos e familiares. Mas desta vez foi na cidade!
Um destes dias faleceu um grande amigo do meu pai. A esposa tornou-se uma irmã da minha mãe e o filho meu amigo desde a escola primária. Hoje foi o seu funeral.
Tive de ir, até porque os meus pais não tinham condições para tal e assim fiz eu a representação familiar. Depois também me pareceu importante acompanhar a família nesta derradeira viagem de um bom amigo.
Cumprimentei a viúva que se admirou da minha presença. Depois...
Convém dizer que eu não via o meu amigo, agora órfão, haveria umas dezenas de anos. Andámos na escola, mas a determinada altura cada um seguiu o seu caminho. Ele seguiu a Marinha eu continuei empedernido civil. Agora somos ambos reformados...
Depois... comecei a ser cumprimentado por muita gente que calmamente foram-me dizendo o nome e que eu recordei dos tempos de juventude. Eles e elas. Cumprimentei-os a todos e fomos dizendo umas coisas semi parvas, para quem já tem idade para ter juízo.
Finalmente o féretro saiu da capela mortuária para o crematório onde assisti à missa de corpo presente. No final despedi-me da família e regressei a casa.
No caminho olhei-me no espelho retrovisor e com algum agrado e um sorriso malandro disse para comigo: estás um jovem!