São dez e meia da manhã de uma quarta-feira de um final de Julho. Obriguei-me a resolver uns assuntos que eram anormalmente adiados. Ou por evidente falta de tempo ou porque estava noutro local.
Bom, mas hoje lá fui dar as minhas voltas e já a caminho de casa passei por uma avenida que ladeia a linha do comboio. A rua é larga, mas ainda assim o estacionamento em ambos os lados estreita-a. Porém os passeios estão livres de viaturas para que os peões os usem sem perigo.
Estou eu a passar a rua de carro quando à minha frente deparo com uma idosa que com evidentes dificuldades em se deslocar, ainda assim o fazia ocupando parte da faixa da estrada. Pior... a bengala que suportaria parte do seu peso estava tão inclinada que qualquer viatura a poderia atingir.
Aproximo-me devagar, mas tenho algum receio em me aproximar da anciã. Então reparo que não nenhuma viatura atrás de mim e paro o carro no meio da estrada, saio e vou ao encontro da idosa:
- Bom dia minha senhora.
- Bom dia - respondeu-me de voz trémula por detrás da sua máscara azul.
. Não seria melhor a senhora caminhar no passeio? É que na estrada arrisca-se a ser colhida por algum carro... - tento eu.
- Tem razão, mas os passeios são estreitos e depois as pessoas querem passar depressa...
- Então porque não escolhe o lado de lá... sempre há menos peões.
A senhora olha para mim e temi o pior. Mas após um suspiro cavo a velhota respondeu-me:
- Assim seja... ajuda-me a chegar ao outro lado?
- Claro... obviamente!
Esclareço que naquela altura alguns condutores perdiam já a paciência por esperarem atrás do meu carro e buzinavam.
- "Temos pena... " - pensei.
Ajudei a atravessar a rua e despedi-me desejando-lhe um bom dia. Quando entrei no carro agradeci a quem estava atrás à espera e segui finalmente caminho.
Deste meu episódio matutino guardo duas conclusões... A primeira é que os passeios são roubados aos peões para originar estacionamento pago, a segunda é que mesmo com pandemia as pessoas continuam exasperadamente apressadas e frenéticas.
Se há algo nesta pandemia que não me deixa descansado é esta estória da vacinação. Por aquilo que vou lendo e ouvindo na rádio ou por vezes nalguma televisão que esteja ligada cá em casa, é que ninguém tem a certeza de que a vacina será o melhor antídoto.
Conheço até um médico que foi vacinado e que me disse que, exceptuando ele, todos os colegas que foram vacinados com ele tiveram grandes reacções.
Sendo assim, será mesmo necessário vacinar, por exemplo, idosos que não saem de casa?. Passo a dar um exemplo: o meu pai tem 88 anos e foi chamado pelo Centro de Saúde para fazer a primeira vacina. O mesmo se irá passar com a minha mãe que tem 82 anos, já que irá no mesmo dia mas uma hora mais tarde.
É que bem vistas as coisas o meu pai raramente sai de casa. Isto é... sai para ir à horta e regressa. Depois nos supermercados é sempre o primeiro cliente a entrar e até hoje, que eu saiba, escapou à infecção.
Neste sentido sinto que os lares mereceriam uma maior intervenção e cuidado na vacinação.
- Uma criança nasce totalmente dependente dos outros, sejam mães, pais, avós ou amas;
- Um idoso é profundamente dependente dos outros, sejam filhos, netos ou cuidadores;
- Uma criança aprende tudo o que se lhe ensina;
- Um ancião desaprende o que demorou tantos anos a aprender;
- Uma criança não se preocupa com o futuro;
- Um velho não se rala com o passado;
É com enorme mágoa que diariamente vou assistindo ao definhar de alguém próximo, que durante muuuuuuuuitos anos, teve nas suas mãos as rédeas da vida de muita gente.
Hoje tem de ser vigiada permanentemente, já que não tem consciência do que faz. Por exemplo já foi apanhada a tentar deitar detergente no seu próprio leite ou na ração da cadela. E foi complicado dizer para o não fazer...
Não se lembra dos nomes dos netos e quando raramente se recorda confunde-os todos. Espalha objectos por todos os armários sem ter consciência real de onde são as coisas.
Dia a dia nota-se que perde mais discernimento e é aqui que temos de ajudar. Já não vale a pena obrigar a pensar pois nunca conseguirá… A senilidade venceu!
São quase cinco da tarde. Caminho apressado para o hospital onde me aguarda um exame perto da hora do chá inglês. Desde o metro ao portão de entrada são trezentos metros de um passeio largo.
Cruzo-me com diversas pessoas anónimas e de (quase) todas as idades. O sol bate forte mas hoje até nem está muito calor. Olho em frente quando me apercebo de uma idosa que agarrada a uma bengala caminha em sentido contrário do meu muito devagar, denotando esforço.
No instante seguinte percebo que cambaleia e ameaça cair. Estou a meia dúzia de metros da anciã… nem tanto! Temo que possa tombar e a minha reacção instantânea é correr ao seu encontro. Em boa hora o fiz porque a senhora larga a bengala e se não fosse eu teria caído com violência na calçada.
Não a deixo cair, amparo-a e dou-lhe a bengala. Logo uma jovem aparece junto de mim disposta a ajudar. Identifica-se como enfermeira do hospital que eu tinha como destino. Olho em redor e encontro uma parede pequena que serve às mil maravilhas para a senhora se sentar. Devagar, eu a jovem enfermeira, conseguimos que ela descanse.
- Como se chama? – pergunto!
- Verónica…
- Que idade tem? – pergunta a enfermeira.
- Oitenta e nove…
Aqui olhámos um para o outro e a pergunta estava lá… Todinha…
- Como era possível que esta senhora ande em Lisboa completamente sozinha?
Continuou o breve interrogatório:
- Donde vem e para onde vai?
Numa voz sumida foi respondendo:
- Fui a uma consulta ao hospital e agora vou ali apanhar o autocarro que pára à minha porta.
- Não tem ninguém para a acompanhar: filhos, netos… alguém?
Olhou-nos a ambos e eu percebi naquele olhar, que jamais esquecerei, o verdadeiro sentido da solidão. Entretanto a enfermeira aproveitara a mão dada à idosa para lhe medir a pulsação. Apercebi-me pelas vezes que olhava o relógio. Finalmente respondeu:
- Estão todos muito longe.
- A senhora tem uma pulsação muito fraca. É melhor vir ao hospital para ser observada.
Num gesto que pareceu repentino pretendeu levantar-se, mas nós impedimo-la. Logo no momento seguinte soou qualquer coisa que identifiquei como sendo um telemóvel. Da idosa que também ouvira. Da mala, tão velha quanto a dona, Verónica retirou o aparelho, olhou o monitor e disse:
- É o meu filho.
Antes de falar, a enfermeira virou-se para a doente e perguntou mais uma vez, enquanto retirava o aparelho das mãos da senhora:
- Posso falar com o seu filho?
Não resistiu. A jovem afastou-se de mim enquanto falava para alguém. Não foi necessário um minuto para voltar a entregar o aparelho à dona:
- Falei com o seu filho… Ele está a sair do golfe e vem já buscá-la.
Caso 1 Há uns anos uma idosa esperava numa paragem por um autocarro que jamais aparecia. Ultrapassando detalhes, acabei por levar a senhora no meu carro aos Bombeiros, onde iria tomar uma injeção. Como não tive coragem de a abandonar coloquei-a em casa, onde vivia com um marido entrevado havia anos. Família? Não tinha!
Caso 2 No Hospital de Santa Maria uma idosa foi deixada manhã cedo para uma consulta. Após ter sido consultada descobriu que a carrinha que a levara ao Hospital só a iria recolher pelas cinco horas da tarde. Até lá teria de aguardar. Era meio-dia! Família? Uma filha que não via havia tempos. Ofereci-me, após a minha consulta, para a levar a casa. Porém teria de esperar que eu fosse também consultado. Não esperou, desapareceu entre a multidão.
Caso 3 Uma amiga octogenária caiu no chão de uma grande superfície e acabou no hospital com o diagnóstico de bacia fracturada. Ficou naturalmente acamada durante semanas. Viúva, mãe de uma filha também ela doente, esta minha amiga passou a viver do que a filha ainda assim ia preparando, sempre de má vontade. Acabámos por ser eu e a minha mulher a valer à senhora idosa: Visita a um Ortopedista por causa da bacia, a uma médica dentista devido a um abcesso e um número indeterminado de situações que exigiram a nossa presença e apoio.
Resumindo fica a questão para quem quiser ou souber responder: perceber quantos idosos se encontram nas mesmas (ou piores) situações aqui relatados, isto é, votados ao profundo abandono?
E não me respondam com a desculpa esfarrapada de que a crise é que é mãe de todos os males!