Há cá em casa uma imagem muito antiga que representa a descrição bíblica da "Fuga para o Egipto" de Jesus Cristo, ainda muito pequeno, acompanhado de sua Mãe Maria e seu Pai José.
Hoje a minha neta olhou para a criança que representa o menino Jesus e perguntou-me com a natural inocência infantil:
- Quem é aquele menino, avô?
Ui e agora pensei? Se bem que pai e mãe tenham feito todos os mandamentos de igreja, é certo que ainda têm os filhos por baptizar. Uma opção que aceito, mas gostaria que fosse diferente. Bom então lá tentei explicar quem foi Cristo, o que fez no Mundo e o que representa para mim. Até aqui foi tudo pacífico, ela escutou interessada só que haveria de se alterar no preciso momento em que usei a palavra fé!
- E o que é a fé, avô?
Pronto e agora como descalço esta bota, perguntei a mim mesmo. Mas nesse preciso instante fui salvo pela cadela que entrou na sala e chamou a atenção da miúda. Porém como sei que a catraia tem memória de elefante arrisco dizer que daqui a dias voltará à questão da saber o que isso da fé.
Tenho assim, entre mãos, um problema bicudo para resolver porque, como já escrevi noutros postais, a fé é algo que não se descreve apenas se sente. E como explicar este sentimento a uma criança de quatro anos?
Enfim, nada como as crianças para nos colocarem as perguntas certas. Espero apenas ter a capacidade de conseguir esclarecê-la.
Falo das bolhas de fé que nestes últimos três dias foram apresentadas a 86 peregrinos. Mas comecemos pelo princípio:
Dia 1 - A riqueza dum cubo de gelo
Começamos cedo, como sempre. Após a eucaristia madrugadora fizemo-nos ao caminho em passo despachado. Primeira paragem em D. Maria para junção em comunidades. A mim calhou-me Maria Goretti uma santa do século XX. Mas foi na Malveira após o almoço que obtivemos a primeira grande bolha de fé. O Padre Jorge Anselmo depositou na mão de um dos peregrinos um cubo de gelo, significando este a riqueza de cada um. Ainda atravessávamos a povoação saloia e já a maioria dos peregrinos se encontrava pobre. A riqueza esvaíra-se por entre as mãos. Estávamos agora mais abertos para receber todos as dávidas que Deus reservava para nós. Desaparecera a riqueza física, restara a espiritual.
Dia 2 - A (in)justiça do vazio
Após uma noite mal dormida, eis que regressamos ao caminho. a manhã parece fria mas o caminhar aquece-nos. A igreja de S.Quintino surge imponente no cimo da colina. Rezam-se laudes num ambiente que convida á meditação e à interioridade. Partimos para Chã onde um segundo pequeno-almoço nos aguarda. Café à moda antiga, leite e tantas, tantas iguarias. Após a oração do Angelus eis que surge a injustiça do dia. A todos peregrinos foi entregue somente um invólucro de um qualquer chocolate enquanto os jovens da organização se deliciavam com chocolates verdadeiros. Um exemplo que pode ser a nossa vida do dia-a-dia.
Dia 3 - Um coração manchado
A atapa sabia-se longa e muito complicada. Após laudes em pleno eucaliptal partimos para Tagarro onde após reforço foi atribuído um pequeno coração de papel riscado por uma criança, simbolizando cada risco, cada mancha as nossas mágoas e as nossas tristezas. O caminho longo, longo até Asseiceira trouxe-nos o silêncio. Era preciso apagar as manchas, os traços dos nossos corações. A borracha estava também lá mas estaria a coragem para o fazer? A tarde trouxe-nos o terço, rezado em comunidades, e a missa. Neste fim de dia uma mui grande surpresa: o Rodrigo Sarmento veio ao nosso encontro. As saudades desmanchadas naquele abraço amigo e caloroso. Como gostei de te ver amigo...
A noite deu-nos a adoração do Santíssimo. Momentos únicos a terminar um dia cheio, cheio.
Dia 4 - A Cruz como exemplo
Partimos de Rio Maior bem cedo. As fráguas ficavam a uns meros nove quilómetros de distância. Nada para quem já tinha andado quase cem. Nesta povoação leram-se as laudes e após o café regressou-se à estrada movimentada. Fiquei para trás para uma conversa a sós com o Padre Jorge. Um catequista permanente, uma força da natureza, um exemplo de vida na entrega completa aos outros, dando assim forma à obra de Deus. Um contratempo devido às abelhas não esmoreceu o grupo que entrou na igreja de Monsanto pronto para ouvir a palavra de Deus. Mas ainda havia muito para caminhar e acima de tudo para sentir. A Via Sacra rezada no caminho para o Covão do Feto foi demasiado profunda. Não consegui evitar que as lágrimas corressem em torrentes. Textos belíssimos que tocaram todos os pergrinos. O fim da noite trouxe-nos a Adoração da Cruz. A Cruz que nos salva e que Cristo carregou para nos salvar. E cada um naquele instante por entre lágrimas sentidas adorou a sua cruz e aceitou carrega-lá como Cristo o havia feito. As canções serenas e apelativas ajudavam-nos a perceber melhor o testemunho de Jesus, naquela caminhada para o Calvário.
Dia 5 - Chegada ao regaço da Mãe Santíssima
Último dia. O desejo de chegar a Fátima era tão grande que a primeira subida da serra logo pela manhã fez-se sem problemas de maior. No Covão de Coelho rezámos laudes e recebemos o carimbo da fé. Mais à frente o silêncio até quase ao almoço. Após um belo repasto partimos na nossa última etapa até à Cova da Iria. Entrámos no santuário todos juntos a rezar o terço. Na Capelinha das Aparições apagaram-se as últimas manchas dos nossas corações. As lágrimas choradas naqueles instantes lavaram o que ainda havia de triste nas nossas almas. Instantes maravilhosos para quem vive na fé de Cristo e de Sua Mãe Santíssima. Seguiu-se a missa com muitos depoimentos de Peregrinos e o agradecimento sincero à Virgem Maria por nos ter sempre acompanhado. A festa final foi bonita... Porque é necessário ter coragem para se ser feliz!
Finalmente
Um agradecimento sincero a quem neste caminho me aturou:
À minha mulher,
ao Luís Costa,
à Sara Gomes,
à Mafalda Martins (não fui que te ajudei, foste tu que me ajudaste, acredita!),
ao João Gaspar,
ao Edgar que era da minha comunidade e restante organização,
ao Padre Jorge pela paciência.
E obviamente aos restantes peregrinos.
Nota Final
Este texto foi iniciado no dia 16 à noite, mas só hoje tive a Coragem da Felicidadede o terminar.