Conhecemo-nos no trabalho. Um dia, à hora do café, disse-lhe que tinha um blogue e ele logo ali mostrou-se interessado na minha escrita.
Quando pensei nesta ideia de convidar pessoas sem ligações à blogosfera ele foi um dos primeiros nomes que surgiu no meu pensamento.
Como ser humano tenho-o em muitíssima boa conta. O que nos tempos que correm não é fácil.
Aceitou sem receios o meu convite para aqui escrever. O tema que aqui trouxe está na ordem do dia e merece uma profunda reflexão a nível global. Digam lá então de vossa justiça!
Entretanto... muito obrigado André!
Começa hoje a consciencialização
Nos últimos anos temos assistido, por esse mundo fora, a um crescendo de opiniões extremadas, quer seja na esfera política, no desporto, na sociedade, ou em qualquer outro tema sem importância. O problema não é novo, está identificado, mas é interessante quando, do outro lado da balança, a sociedade apenas tenha encontrado resposta no politicamente correto. De um lado, expandem-se ideais de radicalismo e extremismo como estandarte à liberdade de expressão, do outro, e na mesma dose, um excesso de zelo para não ferir suscetibilidades. De um lado, os haters que atacam qualquer um com ideias diferentes das suas, do outro, as gerações floco de neve, pessoas demasiado sensíveis a pontos de vista distintos, donas e senhoras da sua verdade e demasiado vulneráveis para desafiar as suas convicções.
E para ajudar ao problema, hoje em dia é fácil partilhar opiniões através de redes sociais e plataformas digitais. Se antes partilhávamos a nossa opinião com amigos e conhecidos num espaço próprio, agora uma mera opinião pode-se divulgar ao mundo inteiro, para todos, sem fronteiras, sem exceções. Para além disso, ferramentas inteligentes de verificação de conteúdos e identidades são parcas ou inexistentes. Mas a justificação para tanta discórdia, intolerância e hipersensibilidade advêm da tecnologia, da proximidade e anonimato que esta oferece? Ou falta algo nesta equação? Para tentar responder a esta questão é necessário perceber dois conceitos bem distintos: Privacidade e Autoritarismo.
A internet é quase sempre um alvo do totalitarismo e das grandes corporações, em ambos os casos, é considerada como um risco à proteção do poder instalado ou dos monopólios. Em países de terceiro mundo, a internet não o é, e nos restantes temos assistido a inúmeros episódios que são reflexo do incómodo que existe, pelo facto da internet ser um meio de expressão livre e altamente poderosa. Exemplo disso foi a aprovação da Lei de Combate à Pirataria Online (SOPA), justificada como salvaguarda dos direitos de autor, e mais recentemente a violação da neutralidade da internet nos Estados Unidos. Sabemos hoje que o escândalo Facebook / Cambridge Analytica (CA) permitiu a eleição de Donald Trump como um dos mais controversos presidentes dos Estados Unidos e, foi também, uma preciosa ajuda para o desfecho na votação do Brexit. Para isso, a CA utilizou dados de quase 100 milhões de pessoas em todo o mundo, de forma indevida e sem o seu consentimento. O autoritarismo digital continua a crescer, e vem disfarçado de leis mal intencionadas, redes sociais que controlam e monitorizam os nossos interesses, aplicações inquérito que traçam o nosso perfil de pensamento, entre outras.
A triste realidade é que também somos responsáveis, mesmo que de forma indireta e, muitas vezes, involuntária. Estamos a dar de mão beijada os nossos próprios dados, a nossa identidade, a nossa forma de pensar, vestir, comer, as nossas convicções políticas, a nossa religião, por onde nos deslocamos, basicamente, tudo. E não sejamos ingénuos em pensar que estes dados não seriam utilizados por aqueles que têm poder e dinheiro para o fazer. No futuro todas as campanhas políticas se focarão em modelos preditivos de comportamento, propaganda direcionada, especialmente para alvos persuasores de forma a estes influenciarem outros, mimicando assim comportamentos de manada. E vale tudo, táticas antigas de dividir e conquistar, a explorar clivagens étnicas e religiosas, promovidas pela desinformação e suportadas pelas redes sociais. Uma mistura explosiva com potencial para dividir ainda mais sociedades e, em última instância, o mundo tal como o conhecemos.
Por isso, cabe a cada um de nós, decidir o que partilha com o mundo, sabendo os riscos que corre e advêm de tal decisão. Cabe a cada um de nós, ter o espirito crítico necessário para identificar noticias falsas. Cabe a cada um de nós, respeitar as diferentes opiniões de uma forma mais introspetiva, elevando assim o debate e a partilha de ideias. Cabe a cada um de nós, o futuro da nossa sociedade.
Será que um dia teremos alguma espécie de regulação da internet? Teremos livre-arbítrio para formularmos as nossas próprias opiniões? Será possível idealizar eleições dignas e justas? Debates racionais desprovidos de ataque, ódio e excesso? Onde está o meio termo em tudo isto? Ou utilizando o termo inglês, o sweet spot, onde os extremos se anulam e a magia acontece? É uma realidade tangível ou apenas um ideal para as gerações do futuro?
Teve uma vida repleta de eventos. Partiu nos anos 70 para Paris onde trabalhou no Consulado luso e mais tarde num banco.
Foi outrossim em terras gaulesas que casou, teve filhos, netos e se reformou antes de regressar definitivamente a Portugal.
Uma pequena-grande mulher que esteve SEMPRE presente na minha vida.
O convite que lhe enderecei para aqui escrever foi prontamente aceite.
Ontem recebi por carta o seu texto manuscrito. Naquela letra bonita que toda a vida a caracterizou.
Bem haja!
Há dias encontrei numa gaveta um postal, que há anos a minha grande e saudosa amiga Fernandinha me deu. Não foi no único!
Ela gostava de ir a uma livraria situada numa das ruas transversais à Rua do Ouro e Augusta - também cheguei a lá ir - e é verdade qyue al´rm dos livros tem no anadar inferior, entre outros artigos, uma grande colecção de postais.
Este a que me refiro é tão lindo que já na altura em que a minha amiga me ofereceu tocou-me no coração. Actualmente , com o peso dos anos é mais sentido, mais vivido e, como tal pensei partilhá-lo com outras pessoas. Algumas, talvez no fim da vida como eu, compreenderão e sentirão melhor a mensagem.
Desta forma presto também homenagem à minha querida amiga.
Verde como a nossa esperança, os relvados, a bandeira do nosso clube ou os equipamentos dos nossos atletas. Deste modo sofremos e deliramos com as derrotas e vitórias do nosso clube.
Iniciámos a conversar através de pequenos comentários. Comentava ela, respondia eu. Primeiro lá no "Sporting - És a nossa fé" mais tarde aqui mesmo. Todavia, se por um mero acaso nos cruzássemos na rua nem ela nem eu falaríamos já que apenas nos conhecemos através deste mundo virtual.
Há um adágio popular que diz: quem vê caras não vê corações. Na internet é precisamente o contrário: quem vê corações não vê caras! E este seu coração é do tamanho do Mundo e arredores! Como uma boa sportinguista sabe ser...
Entretanto CAL cometeu um simples lapso, que foi assumir que não teria nunca um blogue, porque não tinha nada a dizer às pessoas... Esta sua declaração aguçou-me o engenho e vai daí convidei-a a escrever aqui nesta secção de "Bloguers Improváveis!". Que aceitou...
Ora para quem assume não ter nada a dizer, eis o que esta algarvia escreveu...
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A9 antes de JC
Ainda que quisesse, não teria como fugir-lhe, afinal de contas, foi o que proporcionou que nos conhecêssemos. Ainda que quisesse fugir-lhe, a verdade, é que a história que aqui partilharei, é, não só, feita de Sporting, como de afectos. E afectos - emoção, em bom rigor -, é o que me ocorre quando penso em José da Xã.
A história que aqui vos trago é real, acontece ainda agora, e terá sempre um final feliz.
Haverá dois anos? Três? Descobri-lhe o cartão de cidadão no meio do relvado. Reconheci-lhe o rosto, aprendi o seu nome, e pedi aos colegas que o guardassem até que pudessem devolvê-lo ao dono.
Não mais me esqueci do seu nome. Não mais falei com ele, após confirmar que recebera o que lhe pertence, excepto, nos costumeiros cumprimentos de circunstância, enquanto deposito o lixo ou passeio o Dodi. Sei que aparece pelo Carnaval, Páscoa e Verão. Foi num Verão que o conheci.
João Carlos. Ou Johnny. Ou JC.
Fui eu quem o convocou, pelo nome, para uma reunião de improviso entre moradores do prédio e patrulha da PSP, ali mesmo, na rua em que o encontro em modo (eficaz) sinaleiro de lugares disponíveis para estacionamento. Era preciso encontrar uma solução, idealmente pacífica, para o cão sem trela de um dos seus colegas. Reagiu com muita surpresa e indisfarçável medo. Tratei-o pelo nome, sei afinal de contas o seu nome. É fácil detectar-lhe ‘medo’. Aproxima-se cabisbaixo e de mãos atrás das costas. Participa activamente na troca de impressões, mas de olhos predominantemente no chão. Revelou proactividade e, falo por todos, deu-se por concluída a mini assembleia de ocasião, com a certeza de que o problema seria resolvido sem transtorno(s) de maior e, claro, com a pronta e activa colaboração do João Carlos.
Vestia (ainda) a alternativa 2018/2019. Tenho sempre dificuldade em desligar-me de elementos visíveis de Sportinguismo, depois de ir a Alvalade. Algumas horas antes aplaudira aquele que, desconfio, foi (terá sido?) o último golo do capitão Fernandes, Bruno Fernandes, em Alvalade. Estreei-me em grande na A9.
Mentiria se dissesse que lhe vi alguma reacção que denunciasse que partilhamos amor clubístico. Mentiria se dissesse que sequer supunha que estava mesmo ali ao lado, quem mais revisse mentalmente golos de Bruno Fernandes, com a tristeza própria de quem antecipa que tão cedo não o verá repetir – uma e outra vez – tão maravilhosos movimentos, de verde e branca do Leão Rampante.
Ao final da tarde? Foi ele que me chamou. Senhora. A medo. E o medo, não me pareceu ser (só) do Dodi, ou, se preferirmos, dos 38kgs de puro charme canino e caninos, todos eles prontos a atestar (instinto de) protecção, defesa e contra-ataque. Mãos atrás das costas, outra vez, o branco dos olhos mais vermelho do que lho vira de manhã. Desculpou-se, a medo, pelo interpelo e explicou que de manhã não fora capaz de me dizer uma coisa que queria muito partilhar.
Ali? Na presença da polícia?É melhor não. A sua camisola é tão bonita! É a mais bonita..! Já tive uma do Figo. E já apertei a mão ao Oceano.
Isto tudo, enquanto refugia, uma vez mais, os olhos no chão. A intensidade da luz dispensava ainda o uso dos óculos escuros com que, agora, se protege quase todos os dias.
Depois deste dia, a larga maioria dos passeios do Dodi e das idas à ilha ecológica, deixaram de se pautar por meros cumprimentos de circunstância. São agora acompanhados pela partilha de pontos de vista, alegrias e carpires de mágoas verde e brancos. Tem umas quantas, o João Carlos. Ou Johnny. Prefere Johnny. Reage com fúria se me ouve tratá-lo por senhor. Eu, não sou senhor [danado, que intriga]. Sou o Johnny. Luso-americano. And, yes, his accent quite proves it. Sentiu a sagração do campeão da época passada, com redobrado pesar, porque frente ao Santa Clara que o faz luso. É que eu, não vi só as galinhas sagrarem-se campeãs, foi logo frente ao Santa Clara… Sempre ouvi dizer que um azar não vem só, JC, toda a razão.
Diz-me, desde que se conhece a data do jogo para a Taça Cândido de Oliveira, que dia 4 de Agosto, vamos depenar a galinha, e comer arroz de cabidela! Ahahaha!
Ri-se, e rimo-nos.
Conta-me como o patrão lhe refreava os ânimos, sempre que tentava interpelar os jogadores. Estás aqui para trabalhar, rapaz, não podes ir com essa fome toda aos homens. Jogava-se ainda no antigo José Alvalade, o único que conhece, e o JC participava na construção das piscinas. Mas eles estavam mesmo ali...
Repete, ali, na nossa rua, uma e outra vez, que o Presidente, este, o Frederico Varandas, é mesmo doutor, daqueles que nos tiram as dores, não dos que n(o-l)as dão, já disse que o Bruno Fernandes não sai por 35 milhões. É, por estes dias, a sua grande e recorrente aflição, a eminente saída do nosso capitão. E o outro afinal é doutor de quê? Eu ainda gostava de saber do que é que o outro é doutor. Palavra de honra que me passou pela cabeça que o Johnny seria leitor do És a Nossa Fé e que o seu telemóvel não serviria, afinal, só para dar uso aos auscultadores, para tirar fotografias ao autocarro do Sporting, de cima do viaduto – mesmo ao lado do Continente – onde esperou horas, e à chuva, para vê-lo passar a caminho do Municipal de Portimão; afasto a ideia, mas não esqueço a possibilidade.
Ainda está muito zangado, o Johnny. Zangado, com o outro. Culpa-o pela saída de Rui Patrício, que – claramente – idolatra. Um rosário de elogios é o que lhe oiço. Acha-o, ao outro, culpado pelo desencontro com o Coentrão, que é mesmo dos nossos, é que é mesmo Sportinguista, o Fábio. Sinto-lhe a zanga na voz, muda de tom, sobrepõe-se a exaltação que se avoluma exponencialmente quando fala de Alcochete. Diz-me que no dia seguinte se apresentou ao serviço, de camisola preta. Que estávamos de luto e que os colegas não têm nada com isso, que isto são dores só nossas. Bateram nos nossos jogadores… voz embargada, zangado e de dedo em riste, convicto de que há um culpado que ainda vai pagar pelo que nos fez. Acha que a Judiciária - que anda em cima dele, ai anda, anda! - ainda vai encontrar provas inequívocas que dêem forma indesmentível aos seus sentires. E uma correspondência punitiva que, dificilmente, arrisco eu, serviria para atenuar-lhe a(s) dor(es).
Dificilmente, serviria, sei eu, para diminuir a que fui sentindo ao longo de tanto tempo.
Interrompe-me, quando lhe conto a interacção que tive, na fila, à espera para entrar no Pavilhão João Rocha, com a consócia - 35 anos de vida associativa - que ancorou a decisão de se opor à expulsão de sócio do anterior presidente, à convicção de que, ao contrário de todos os outros, este, não nos roubou.
Não nos roubou!? Não nos roubou!? Roubou!, roubou! Roubou-me andar com a cara limpa à frente dos andrades (um dos colegas é fervoroso adepto do clube nortenho mais popular em Portugal) e dos lampiões. Eu, quero ganhar de forma limpa! Eu, não quero cá troféus que não ganhámos de forma limpa. Eu, tive que os aturar dias a fio. E tenho que os aturar, que ainda me jogam isso à cara. E agora, vão jogar isso à nossa cara para sempre. Ainda pensei que tinha de lá ir eu que ele não ‘desagarrava’ o lugar. Era uma força que a gente tinha, dizer que o Sporting, só joga e ganha limpo. E envergonhou-me. E ele é que diz que tem vergonha da gente!? E os milhões que a gente perdeu com as transferências, com as rescisões?
Digo-lhe que, por agora, temos de dar tempo à Justiça, que o que havia a fazer, dentro do Clube, já foi feito. Pergunta-me se ouvi o discurso da consócia irmã do ex-presidente (sempre bem informado, o JC), digo-lhe que não, que entrei depois. Eu pensei logo que ia lá votar – diz-me, contente.E que depois me contava. Eu não posso ir lá votar, - encolhe os ombros - não sou sócio.
E conto, JC. Só (ainda) não lhe contei que me apresentei – inadvertidamente – de tesoura de escolinha primária na carteira, mas de resto, conto-lhe os pormenores todos de que me lembrar.
Contei-lhe que estive na Loja Verde, que toquei nas camisolas desta época. Enquanto o faço, espreito-lhe o rosto com redobrada atenção na expectativa de vislumbrar sinal de preferência por qualquer das actuais camisolas. Mostrei-lhas dois ou três dias depois do lançamento. Aquelas que têm os Xs? As desta época, têm a data da fundação em numeração romana, sim, JC.
Suspiro, confesso, já que a ideia de empregar 80€ numa camisola que acabará rapidamente roubada do estendal do acampamento onde mora (já aconteceu), me aborrece. Aborrecem-me, preço, e o mais que expectável (novo) roubo.
Tem, não se pense, uma camisola preferida: época 2017/2018. A alternativa. A preta e verde néon. Adora o verde néon. Engoli em seco, há aqui semanas, quando partilhou a inusitada preferência. Procurei, em vão, a bendita camisola, agora, que sei que faz 50+3 dia 19 de Julho – é exactamente assim que comunica a sua idade, 50+3.
Macron.com, macron.pt, Loja Verde online, telefonema para o Porto – sede portuguesa da Macron –, telefonema para o Sporting, a pedir resposta ao e-mail enviado para a Loja Verde.
Nada.
Tenho imensa pena JC, mas essa, já só encontro em tamanho muito pequeno para criança, em Itália (de onde a Macron é), e nem sequer expedem para Portugal. Então mas do Benfica há aí por todo o lado. Ah! É que os Sportinguistas esgotam logo as camisolas não são como as galinhas! Ahahah!
Acaba-se-lhe o riso, e acrescenta: Eu ainda pensei comprar uma na feira, mas depois, não estava a ajudar o Clube.
Não chegou a receber a camisola que diz ter conquistado numa (arriscada) aposta. Ganhou-a e não foi varrer a rua envergando uma saia. 8, Bruno Fernandes, nas costas, mas só se ele não sair. E acredita que nem o próprio Bruno quer sair, acredita que ele é Sportinguista e que quer ser campeão pelo Sporting. Perguntei-lhe porque não o seu nome, e um número que seja importante para ele. Dia, ano de nascimento, por exemplo.
O meu nome!? Sousa?Ou Johnny? Naaaã, just leave it Bruno Fernandes.
O JC, que me corrige – zangado – sempre que o trato por senhor, educadíssimo, que nunca me pediu moedas ou cigarros, todo ele pudores na hora de perguntar quanto me custaram as peças de vestuário "Sporting" que visto, vive as minhas (poucas) idas a Alvalade com uma alegria à qual é impossível ficar indiferente. E, sim, está atento e informado. Sabe as medalhas que os atletas leoninos conquistam; acompanha as movimentações das janelas de transferências, comenta-as, e estava, ao contrário de mim, absolutamente confiante de que íamos (Portugal) ganhar a Taça das Nações.
Não sei em que momento, ou por que razão o João Carlos passou a viver, pelo menos parcialmente, à margem da sociedade. Olho para o JC, e concluo o que as sucessivas conversas tidas ao longo destes dois meses deixam claro. A massa de que somos feitos? Resiste à erosão violenta de vidas madrastas. E fá-lo, com brio.
Interrogo-me muitas vezes como, ou por que razão, chegámos ao ponto a que chegámos. Não esqueço a indiferença que passou a marcar cruzares entre Sportinguistas, outrora alegremente cúmplices, na estação de serviço de Almodôvar. Não esqueço comentários, atrás de comentários, atrás de comentários, carregadinhos de fel, nas caixas de comentários por essa blogosfera fora. Sim, fel. Veneno endógeno que todos, sem excepção, carregamos.
Como é que o nosso grande Amor, nos trouxe tanto desamor? Uns pelos outros, e ao ponto de a convivência tornar-se insuportável. Para não dizer insustentável. Foi a Senhora – consócia com 35 anos de vida associativa – que se apartou, ao conhecer-nos a orientação de voto. A minha, e a da outra Senhora, conhecida também ali na fila de acesso ao PJR, favorável à expulsão, mas assumida tia de um Sportinguista de 26 anos contrário à expulsão. Entreolhamo-nos, desconcertadas.
Pergunto-me se alguma vez voltaremos a conviver pacificamente.
Olho uma vez mais com curiosidade para quem me rodeia. Ali, no lugar 14, fila 22, na (improvável) A9, no último jogo da época em Alvalade. Nunca tinha estado na A9. Sei agora que voltarei muitas vezes, e em breve, à A9. Voltarei em breve à A9 na (muito vã, eu sei) esperança, de (re)encontrar o Senhor Felicidades.
O Senhor Felicidades, sentado à minha direita, avô de (pelo menos) dois pequeninos a quem vestiu casacos verdes no final do jogo, entrou-me a pés juntos no coração. O Senhor Felicidades, teve-me no campo de visão o jogo todo, mas apanhou-me, especial e perigosamente, as aflições da primeira parte. E o golo do capitão Fernandes. Do Bruno Fernandes. E o golo dos outros, que sentenciou o resultado.
O Senhor Felicidades, seguramente mais de 70, ria-se, calmo, divertidíssimo, e completamente apaixonado pelo nosso grande Amor, já na segunda parte, quando falhámos golos atrás de golos. Amorosa descontração, a contrastar com minha incontida e sofrida incredulidade. Prova viva, e antiga, de como o (verdadeiro) Amor, deve ser, o Senhor Felicidades. Paciente, bondoso, tudo perdoa, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, nunca perece.
O Senhor Felicidades, retirou o invólucro de plástico da caixa de pastilhas elásticas, guardou-o no bolso, e distribuiu pastilhas pelos dois netinhos. O sabor? Melancia. Trident Senses, sabor melancia. Suponho que quando se vestem casacos verdes – com tanto carinho – aos netinhos, ali pelos 5 anos arrisco, e se tem um interior (visível) destes, pode-se, não se pode?
O Senhor Felicidades disse-me que já tinha muitos anos disto, que já sabe como é, andamos ali, a ameaçar, a ameaçar, não marcamos, olhe, e é isto, sofremos um golo logo a seguir. Com a maior das naturalidades, e sem nunca deixar esmorecer o terno sorriso que tem marcado no rosto. É Sportinguista, o Senhor Felicidades.
Mentiria, se dissesse que foi só o Senhor Felicidades que marcou indelevelmente a minha primeira presença na A9 que (também) me levou ao João Carlos.
Ali, debaixo do mesmo chapéu, e à minha direita, o elevado Senhor Felicidades, têxteis modestos; à minha esquerda, a muito audível Senhora, mãe de duas adolescentes, fã incondicional – e mesmo muito vocal – do capitão Fernandes, Bruno Fernandes, sapatilha Gucci (?) e, quiçá, pulseira Cartier. Atrás de mim, outra muito vocal Senhora, cujo pé/canela/joelho/perna esquerdos quase proporcionavam um encontro imediato com o meu nariz. Depois de Petrov/c, quase CALnarizvic? Uff… Linguarejar de difícil digestão, o da referida Senhora (Alfama? Alvor? Caxinas?) e que me fez virar para trás. Não volto a virar-me para trás, estejam descansados. Até porque a Senhora (farpela que não faria prever), saiu ao intervalo, para não mais voltar. Obrigada Visconde de Alvalade, foi o Senhor que a levou dali, não foi? Desconfio que sim, sabe? Todo o aspecto de ser – compreensível – iniciativa sua. A nossa casa será sempre, primeiro, sua.
À minha frente, o Leãozinho asiático, aluno EAS Aurélio Pereira. Concentradíssimo no, estou certa, também seu grande Amor. O Sporting que veste e, simultaneamente, respira e vê dentro das quatro linhas. Nos meus sonhos? Nos meus sonhos, voltarei em breve à fila 22 da A9 para vê-lo dentro das quatro linhas e aplaudi-lo. Aplaudi-lo, com especial entusiasmo e emoção. A par do Leãozinho caucasiano e português, aluno da EAS Telheiras, das pequeninas, laçarote rosa nos cabelos, projectados pelos ares por ocasião do golo que filmei, são a prova viva do que sempre intuí, pese embora a ameaça, não tão longínqua assim, de PERes.
São a prova muito viva do caminho iniciado por Estela de Carvalho e a que Maria Serrano Sancho dá novo impulso. As muitas meninas. Pequeninas, pré-adolescentes, adolescentes, crescidas. Vocais, mais contidas, griffes, zaras, boho chiques, da cidade e da serra. Ali, na A9.
O que mais ver, se não Glória, e estar entre os maiores da Europa, na presença de inúmeros cidadãos não nacionais?
O presidente Santana Lopes? Chegou atrasado, é certo, e à pressa, esgar de cansaço típico desenhado pelos lábios, para rapidamente imprimir renovado impulso ao corpo, depois de desviar o olhar dos degraus, para o alto. Tinha a garantia da (sua) eternidade, lá no alto.
Atrás de mim, lá no alto, onde os nossos olhos devem sempre estar, um outrora presidente do Sporting. Podemos estar em atraso, cansados, mas, olhamos para o alto – onde os nossos olhos devem sempre estar, onde temos, afinal, a certeza da eternidade –, e continuamos a íngreme subida. Ou, se preferirem, continuamos, Dedicados a Esforçarmo-nos. Obrigada, senhor Presidente. Obrigada, muitas vezes. Pela presença. Pelas mensagens. Ou pela prova de que até os Deuses, descem do Olimpo. Se calhar, só lá estão por saberem cá (em baixo) verdadeiramente estar. Obrigada, senhor Presidente. Obrigada, muitas vezes.
Saio da A9, enxotada pela temível (e odiosa) coluna de seguranças. Zarpam por ali acima à velocidade da luz, raios(partam). Persistem, sem esfarelar, perante os olhares mortíferos que lhes lanço. Verdadeiramente? São raios laser verdes que me saem pelos olhos. Começo por olhá-los de cima para baixo, na vertical, imaginando-os, qual fole desconchavado, a caírem às finas fatias, para os lados. Exaspero-me, perante a constatação do meu falhanço, ziguezagueio o olhar, na esperança de lhes apanhar qualquer ponto nevrálgico com sucesso. Desço – invariavelmente –, as escadas, (in)conformada, olhos semicerrados, extremidade do lábio superior esquerdo ligeiramente arqueada, a deixar ver o canino brilhante. Da próxima vez? Trago o Dodi. Quero ver só se se aproximam, ó carro vassoura do meu descontentamento.
Cruzo-me com muitas caras ao sair. Sorrio. Sorrio sempre. Desvio-me, desviam-se. Não me vêem – nunca me vêem – mas observo-vos. Carreirinhos de formigas apressadas, em todas as direcções. Não me vêem – nunca me vêem – mas vimo-nos há instantes. Somos as caras por trás das luzes de telemóvel que se acenderam e que acenámos. Cruzo-me, sem saber quem é quem. Sei, contudo, o essencial: são Sportinguistas. Sabê-lo, é quanto basta para fazer-me sorrir(-vos).
Até à Rotunda do Leão, tento ainda perceber, sem sucesso, se seriam eslovacos ou eslovenos, alguns dos Leões de Ocasião. Os que nos devolvem a (prova empírica da) Glória (também além fronteiras) que somos. Viro à esquerda, passo pelo PJR, Loja Verde de luzes acesas e aquele Olha mãe! Está aberta! que me fez estremecer e enterneceu. Desejo, em silêncio, que a Mãe possa comprar-te o bocadinho de Sporting (físico) que a alegria da tua voz transporta já, pequenino. Chegou-te à alma, estou certa. Desejo, em silêncio, que a Mãe possa comprar-te um bocadinho de Sporting físico, Leãozinho.
Enquanto saio do posto de abastecimento olho o José Alvalade atentamente, uma última vez. Conduzo agora ao seu encontro, à saída da Rotunda mergulho em direcção a casa, não sem antes passar pela casinha. Recuso-lhe maiúscula e olhá-la de frente. É na minha direita, colada à casa de todos nós, que concentro atenções. Constato-a menos povoada por capacetes e bastões azuis. Com o passar do tempo, todas as peças voltam ao seu lugar. Em retrospectiva, é sempre mais fácil perceber que somos todos peças de uma, e desta, engrenagem. E que todas as peças fazem parte da engrenagem maior. Volto à tona, recupero o sorriso momentaneamente perdido.
Voltámos à tona.
Faço a viagem de regresso à minha (outra) casa, sem a mais pequena suspeita de que dali a mais ou menos 12 horas, o João Carlos, vai (também ele) entrar a pés juntos no meu coração. Sim, meu caro José (da Xã), se o Senhor Felicidades no final do jogo pôs a mão no meu ombro direito e, sorridente, disparou um extraordinariamente doce Felicidades! que me deixou (dolorosamente) pregada à cadeira - quase sem reacção -, o João Carlos esmaga-me, ajuda-me a cada interacção (e sem sabê-lo) a colar os cacos em que todos ficámos. João Carlos. Ou JC. Ou Johnny. Prefere Johnny.
Prefiro JC. Talvez por sentir que Cristos terrenos, serão sempre a expressão mais fiel e digna, do Divino.
Interrogo-me muitas vezes como, ou por que razão, chegámos ao ponto a que chegámos. Sei, contudo, que o verdadeiro Amor, é paciente, bondoso, tudo perdoa, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, nunca perece. Sei, também, que a massa de que somos feitos resiste incólume à violenta erosão de existências madrastas.
A cal, também chamada cal viva, ou óxido de cálcio, em condições ambientes, é um sólido branco e alcalino.
O principal uso da cal viva é a produção de cal hidratada (hidróxido de cálcio). Para isto, dissolve-se a cal em água. A utilização da cal hidratada é difundida, principalmente em argamassas para alvenaria. Assim como o cimento, tem características aglomerantes. O endurecimento da cal ocorre pela absorção do dióxido de carbono presente no ar. Essa reação transforma a cal hidratada de volta em carbonato de cálcio (principal componente de rochas como os calcários).
[in Wikipedia]
Não sei o que diria de Carvalho (Galopim) mas creio que talvez tenhamos que ser todos – Sportinguistas –, um bocadinho ‘cal viva’, que se mistura com água. Parece que ao misturá-la com água (diluí-la?), absorve o dióxido de carbono presente no ar, o que, pasme-se, confere-lhe características aglomerantes, tais como as do cimento.
Então e… se nos diluirmos um bocadinho da nossa forma original? E se absorvermos um bocadinho (a parte útil d) o que nos envolve? Será que nos unimos? Talvez só assim consigamos ser argamassa que liga os tijolos da nossa comum edificação.
A nossa casa, Senhor Visconde de Alvalade, será sempre, primeiro, sua.
Disse-nos, no princípio, que queria que nos esforçássemos. Que nos dedicássemos. Que vivêssemos com devoção. Seriam os passos para, enfim, alcançarmos Glória e sermos tão grandes como os maiores da Europa.
Pôs os olhos lá no alto, o Senhor Visconde. Pôs os olhos na eternidade.
Quis-nos, quiseram-nos na verdade, não circunscritos à sua realidade, económico-social e geográfica, mas mobilizados por todo o país e, sempre, com os olhos postos bem lá no alto. Ditaram, fundadores do Sporting Clube de Portugal, os seus deveres fundamentais e que se sobrepõem a qualquer direito natural: Esforço, Dedicação, Devoção e Glória. É a nossa matriz.
A história que aqui vos trago? É real, acontece ainda agora, escrita pela mão de cada um de nós.
A história que aqui vos trago?
Terá sempre um (infinito) final feliz. Por garantia conferida pela nossa matriz, que todos aceita, todos recebe, sem reserva de proveniência, ascendência ou militância. Obedece, a não outro, que ao princípio da existência. Na sua base, e espero que para sempre, Esforço. Notável. É, orgulhosamente, a base da nossa matriz.
No príncipio, foi e será sempre (espero), Esforço. Esforcemo-nos, pois, por ser ‘cal viva’ em contacto com água.
O infinito final da história que aqui vos trago? Depende não só de cada um dos que cá está, como de todos os que estarão para chegar.
O verdadeiro Sporting Clube de Portugal, é o do Johnny. O de Pedro Santana Lopes. O dos Leõezinhos EAS asiático e caucasiano. O do Senhor Felicidades. O dos sapatos Gucci, Sebago, e do chinelo de praia. O da cal. Da cal que se dilui, para absorver e assim conseguir aglomerar.
Ei-lo, na extraordinária – porque plural – A9. O verdadeiro Sporting Clube de Portugal.
Esforço, Dedicação, Devoção e Glória? Todos aceita. Todos recebe. Agrega. É a nossa argamassa.
Quiseram-nos, não circunscritos à sua realidade, económico-social e geográfica, mas mobilizados por todo o país e, sempre, com os olhos postos bem lá no alto. Ditaram, os nossos fundadores, os deveres fundamentais que se sobrepõem a qualquer direito natural, e que asseguram Glória terrena, ponte última para a eternidade.
Esforço, Dedicação, Devoção e Glória
Voltarei – sei agora – muitas vezes, à A9. Voltarei, não apenas para (tentar) estender a mão direita ao Senhor Felicidades, voltarei de todas as vezes que precisar ou quiser sentir-me ‘cal viva’ em contacto com água. Ou, e se preferirem, arrebatada na peça desta maravilhosa engrenagem. Desta tão grande engrenagem, que é afinal de contas, peça de uma engrenagem maior.
Interrogo-me muitas vezes como, ou por que razão, chegámos ao ponto a que chegámos. Sei que a massa de que somos feitos resiste incólume à erosão violenta de existências madrastas. Sei que o verdadeiro Amor, o nosso amor, é paciente, bondoso, tudo perdoa, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta, nunca perece. Sei que já soubemos ser ‘cal viva’, misturada com água, quando nos sentimos perigosamente reféns. Sei que no princípio, está Esforço. E Dedicação. Devoçãoe Glória. Se calhar, Sabe, de que massa somos feitos. Se calhar, Sabe que somos importante peça da engrenagem maior.
Porque filhos de Amor. O de um avô pelo seu neto. Porque representativos da Vida tal como ela é, heterógenea: Outono, Inverno, Primavera, Verão. Porque a nossa matriz todos recebe, todos aceita, agrega. Porque nos Sabe visceralmente comprometidos com Esforço. Com Dedicação. Com Devoção. Porque Sabe - que sabemos – que no final virá a Glória, ponte última para a eternidade. Porque Sabe – que sabemos –, que nada se perde, tudo se transforma (eterna e única condição). Porque Sabe – que sabemos –, que com Esforço, e tempo, todas as peças caem no lugar certo. Porque Sabe - que sabemos – que somos importante peça, de uma engrenagem maior. Porque Sabe, que assumimos e honramos a nossa condição de importante peça, de uma engrenagem maior. Que, necessária e inevitavelmente, se transforma. Porque nos Sabe visceralmente comprometidos com a criação de uma versão melhorada de quem somos, na nossa engrenagem, e enquanto peça de uma engrenagem ainda maior. Porque Sabe que soubemos ver, desde o primeiro momento, que a riqueza, está na diversidade. Porque Sabe que nos forjámos na sua aceitação plena, sobreposta a qualquer direito natural. Porque Sabe, que sabemos, que ao forjarmo-nos na sua aceitação plena, garantimos a sua perpétua renovação.
Porque Sabe que somos da raça que nunca vergará.
Não sei a que credo responderá Sabe. Não me importo de desconhecer-lhe a proveniência. Sou, afinal de contas, Sportinguista.
A história que aqui vos trago é real, acontece ainda agora e terá sempre, um final feliz.
A amizade tem destas coisas: é inesquecível e inquestionável!
Não obstante os trilhos que cada um de nós palmilhou na vida, a verdade é que houve sempre um elo inquebrável que nos ligou.
Nunca precisámos de o dizer. Nunca necessitámos de o provar.
Basta saber que o outro estará lá... Sempre e de forma incondicional!
A sua escrita sempre foi superlativa. Um diamante das letras bem delapidado, todavia (quase) sempre muito escondido.
Recentemente lancei-lhe o tal desafio de colaborar neste blogue, nem que fosse por uma vez. Pois bem esta escritora, de quem sou amigo há mais de 40 anos, aceitou o repto e escreveu assim…
Reencontro
Amanheceu lentamente, como sempre. O céu acinzentou, clareou, o sol veio com o chamado insistente dos pássaros. As silhuetas dos pinheiros foram-se desenhando com nitidez crescente no recorte da janela. O tempo parou.
Respirou fundo e levantou-se. O tempo não pára, não pode parar, há relógios e horários, é sempre preciso fazer qualquer coisa, mais uma, sempre a importância da inutilidade urgente do pequeno-almoço, do autocarro, da loiça, da aula inerte, do pó que assenta sempre sobre as coisas com a autoridade catedrática do que tem de ser.
O sobreiro acordou com o saltitar dos verdilhões e dos pardais num corropio primaveril. Este ano, pensou, os corvos já não vêm conversar todos os dias. Sentiu a falta do crocitar distinto de cada um como se de amigos se tratasse. Se calhar eram mesmo amigos, faziam-lhe a companhia necessária para sorrir e prosseguir o dia com algum sentido. Qual o que chegaria primeiro no dia seguinte? Iria para cima do pinheiro ou para o telhado? Quem voaria primeiro? Agora, são só os verdilhões no sobreiro e a tontice dos pardais em revoada. Há mais casas e mais gente, o pinhal do lado de lá da estrada é mais acolhedor. Ou a serra. Depois da serra havia o mar…Mar… sentiu a falta do mar como uma bofetada brusca. Memória de cheiro, reflexo de luz, um arrepio vão.
Foi para o chuveiro com os gestos mecânicos de sempre. Sem dar por nada aprontou-se, falou com os outros, pôs a casa em marcha e viu a estranha do costume no espelho, de relance e sorriso sobrevivente e apático, a pulverizar-se com o perfume fingido de flores de um qualquer jardim.
Olhou pela outra janela, voltou aos pássaros num segundo. Mais tarde, já com o sol alto e sem ninguém à janela, hão-de perseguir-se e voar entre os ramos em lutas juvenis. Nessa altura a casa estará vazia, reduzida à sua essência. Casa banal. Semi-urbana. Habitada por fantasmas de gente que não vive, que pernoita e prossegue para o dia seguinte, um atrás do outro sem sentido. Gente como ela. Respiram, olham, movem-se, falam, deixam passar os minutos como se fossem anos e os anos como segundos escorrem-lhes entre os dedos vazios.
Mais um, mais outro, mais outro ainda. E o sol e a chuva falam com a casa vazia, onde todos fazem as coisas importantes de todos os dias. Fazem tudo, com a pressa necessária e com a precisão eficaz dessa urgência de prosseguir, de alcançar o amanhã. Fazem tudo menos sentir. E quando sentem qualquer coisa correm a proteger-se, não vão olhar uns para os outros e descobrir que já quase não existem para além das coisas que os cobrem, que os enfeitam como troféus e que o amanhã desapareceu.
Naquele dia, tal como em todos os outros, apeteceu-lhe ficar em casa e falar também com o sol, com a chuva, com o tempo que não existe. Não fazer nada. Roubar a alegria dos pássaros e sorrir e chorar todas as coisas que não quis sentir ao longo dos anos. Olhar a estranha no espelho e perguntar-lhe se ainda era ela. Perguntar-lhe o que fazia ali todos os dias, agora que já não havia magia. Perguntar-lhe se a magia tinha fugido porque ela a escorraçara diligentemente em cada gesto, em cada adiamento, em cada “agora não, que tenho de acabar este trabalho”. Fugira de cada vez que não fora à praia olhar o mar e as ondas? Em cada vez que não chorara de saudades do Tejo ao pôr-do-sol, em cada vez que não tivera tempo de ir passear no cacilheiro só porque precisava de ver a espuma correr o casco do barco? Ou de cada vez que adormecera de cansaço sem sair para cheirar a terra molhada do aguaceiro e sem ver os relâmpagos cortar o céu? Ou em cada beijo perdido? Ou em cada mergulho que não dera porque já era tarde para o almoço de um outro alguém qualquer? Todos os adiamentos, hoje, pesavam o chumbo de não ter vivido. Não sabia como chegara ali. Onde estava a vida que lhe pertencia? Será que havia alguém para além do enorme cansaço, do desalento e da solidão visceral que o espelho devolvia? Para onde fora ela? Quem era a pessoa ali reflectida? Onde estavam os sonhos?
Tal como tudo na sua vida, via invólucros, bem embrulhados com cuidado, impecáveis. Mas e se as caixas estivessem todas vazias de uma espera inconsequente em nome de coisa nenhuma? Havia várias caixas que embrulhara com enlevo. Havia a do seu ninho de origem, já caída e roída da traça, que alguém lhe havia dado para guardar e preservar porque precisava de espaço para prosseguir caminho. E ela guardara-a, por ilusão de lá vir a encontrar algum sonho perdido. Havia a caixa grande, a da família que construíra, que começara a ocupar todo o espaço. Acabara por lá pôr dentro, sem saber porquê, todas as outras: a dos sonhos pessoais, a das paixões, a da escrita, a da aventura profissional, a dos sentimentos pessoais e amizades primevas. E agora, nesses pequenos compartimentos só restava pó. E, da caixa grande, que ela julgara partilhar com os outros habitantes da casa, só restava o papel de embrulho, ainda com brilhos. Também estava quase vazia. Já o sabia há algum tempo mas evitara sempre ir verificar. Ensinara todos tão bem a serem eficazes como ela que se calhar também já não eram pessoas. Não queria sentir, não podia dar-se ao luxo de sentir, senão parava. Podia não querer sair no dia seguinte, nem correr para o chuveiro, nem usar o perfume. Podia querer apenas ir à praia e ficar por lá, dar um mergulho interminável entre o verde e o azul e ir à procura da menina do mar, do polvo, do caranguejo e do peixe. E rir como eles, entre as marés. Esquecer que havia coisas para fazer, esquecer que tinha crescido e envelhecido e que todos contavam com ela e com e sua eficácia de relógio suíço fora de moda. Esquecer as mentiras. Esquecer-se das horas, esquecer-se dos desejos dos outros tal como os outros se esqueciam dos dela. Esquecer-se de ser útil por medo de, não sendo útil, ficar só. Afinal a solidão estava ali mesmo, e a fuga de si própria apenas tornava mais pateticamente estúpida a situação. Nos tempos em que existira sempre enfrentara tudo de frente. Porque não agora? Estava só porque não já sentia, porque afastara pessoas e ideias que lhe haviam importado para corresponder a desejos e sonhos alheios. Mais uma vez, com medo de se magoar e de ficar só, rasgara tudo o que fora a sua essência por uma existência nesta caixa agora meio vazia.
Às vezes, como se um resto de magia sobrevivesse, acordava do torpor, como agora, e sentia o cheiro do pó das caixas pequenas e rezava para que essa poeira a envolvesse e lhe devolvesse o dom de sonhar. A solidão fora sempre uma companheira suportável, outrora. Deixava-a sonhar à vontade, era um refúgio. Se calhar era o tal ninho que procurava desesperadamente. Se calhar a solidão era a sua essência, a sua existência. Não fazia mal estar só ou sentir-se só. Ter pudor de falar de si. Gostar de ver as nuvens. Gostar do pó dos arquivos e dos papéis velhos. E dos livros. E dos amigos mais ou menos esquisitos e imperfeitos. Não era preciso pertencer a todo o custo, ser aceite a todo o custo, ser vista a todo o custo. Se calhar era só voltar a ser, dentro de si própria o bichinho do mato tão criticado da sua infância. Fazer o que os outros acham disparates. Agarrar a solidão como um presente. Ser invisível. Manter os poucos amigos de alma pura que a vida não afastara e que de vez em quando lhe relembravam a importância do pó das caixas pequenas. Alimentar as raspas dos amores serenos que resistiram ao quotidiano e que ainda povoam a caixa grande. Descobrir num e noutro olhar ou palavra meio dita, partilhas curtas e verdadeiras, breves momentos mágicos que tornassem tudo de novo possível, até encher, de uma nova forma a caixa grande e todas as outras.
Lá fora, dois pardais bulhavam nas laranjeiras.
- Estamos atrasados! Olha as horas!
Mecanicamente, como nos outros dias, largou a alma e saiu a correr.
Conhecemo-nos naquele dia de Outubro, já no remoto ano de 1982. Não obstante a nossa diferença clubística sempre nos uniu uma profunda amizade, que ainda hoje perdura. Optou por sair (cedo demais, acrescento!!!) para a reforma, mas nem isso fez com que nos afastássemos.
Benfiquista de boa têmpera, aceitou de bom grado a proposta que lhe enderecei, em escrever neste meu espaço. Tem ainda o privilégio de ser o "debutante" nestes meus desafios.
Bem hajas António!
Poderia comentar tanta coisa. Mas digitar as reflexões da memória vivida faz me sentir bem, partilhando.
Depois de tantas etapas percorridas já aprendi muito e quero aprender mais. Não sei se naquela altura terei feito bem ou se hoje teria feito melhor. Mas estar vivo é isso mesmo. Relembrar o bom passado, aprender com os possíveis erros, equilibrar o presente para sofrer menos, se possível, no futuro. Hoje na era do digital , da inteligência artificial, da Big Data, dos 4 G e 5 G etc, etc, etc. eu tenho muitas saudades dos meus tempos de criança e adolescente.
Naturalmente o mundo pula e avança e o hoje é tão diferente do ontem quanto mais amanhã. Mas hoje mudou o paradigma e afinal "os"burros velhos também aprendem línguas" nem que seja numa qualquer universidade sénior. Mas os mais novos desconhecem o passado. Eu aprendi a conviver com os tempos.
Porém, a "minha" Lisboa do passado, deixa-me nostalgia. Lembro-me por exemplo, dos amigos da rua que nos passeios faziam belos jogos de futebol, inadvertidamente batendo com as bolas nas janelas dos andares junto ao "campo da bola" e imediatamente se desfazendo em desculpas; dos experientes jogadores daquele "picado" pião de madeira atirado ao chão e apanhado a rodar na mão; ou das corridas das tampas das garrafas ou "cricas" forradas com os cromos de ciclistas, futebolistas, embrulhados nos rebuçados que era o que menos interessava. O prazer não era comer mas sim ter o "boneco" que todos queriam para forrar a sua "crica", para deslizar naquele lancil do passeio, sem cair até as "metas" definidas entre o espaço entre dois tubos de escoamento das águas pluviais.
Daquele autocarro 31 que hoje passa na mesma rua, rebaptizado 731, com percurso muito mais curto, provavelmente por causa do Metropolitano. De onde pelas 18 horas de cada dia, desses anos 70 saia a minha mãe que eu quase atirava ao chão para dar um beijo, com saudades infinitas, como se já não a visse há séculos, que no entanto apenas representavam algumas horas.
Ou do jornaleiro apregoando os jornais vespertinos, com maior incidência no "Diário Popular" que quase diariamente, fruto da sua capacidade e experiência, "voava" do chão até às janelas do segundo ou do terceiro andar, muito a tempo de ser lido antes do jantar (provavelmente hoje iria de drone). Ou do merceeiro que aceitava fiar os bens a pessoas que lhes dava jeito pagar no fim do mês quando recebessem o ordenado, verdadeiros "cartões de crédito" no entanto sem juros.
Como é bom recordar. E partilhar neste espaço convidado do meu grande amigo.