Naquele tempo, muito antes do 25 de Abril, os contínuos eram pessoas pouco consideradas na empresa. Recebiam ordens, obedeciam e ao fim do dia regressavam a casa. Tinham um chefe próprio, que apenas controlava as entradas e saídas, sendo que cada contínuo estava previamente adstrito a um serviço. Quando entravam apresentavam-se ao chefe directo para depois seguirem para as divisões respectivas.
Outros tempos dirão vocês e com toda a propriedade.
Reza este caso que certo dia um contínuo tentou durante todo o dia acercar-se do tesoureiro com a humildade requerida para o efeito, já que nem toda a gente falava com o senhor Tesoureiro assim como não quer a coisa.
Todavia o nosso contínuo, o Laurentino, era teimoso e naquele dia encheu-se de coragem e abordou o responsável pela Tesouraria-Geral:
- Senhor tesoureiro, gostaria mui humildemente de lhe pedir uma coisa - e enquanto falava enrolava as mãos numa deferência inusitada, mas habitual.
O contínuo era um homem muito alto e o tesoureiro tinha sempre de olhar para cima para falar com o subalterno. Todavia chefe era chefe…
Perante o pedido estranho do colaborador, sempre humilde, pontual, competente e trabalhador, o tesoureiro devolveu:
- Diga lá senhor Laurentino… o que deseja?
O outro atrapalhou-se um pouco com as palavras, mas finalmente suspirou fundo e avançou:
- Eu preciso… necessito… de ir amanhã à sapataria…
O chefe quase sorriu, mas manteve a sua postura austera e séria.
- Ó homem para isso não necessita pedir autorização. Mas está autorizado já que assim o pediu.
- Obrigado, muito obrigado senhor tesoureiro – agradeceu o contínuo enquanto recuava até à saída do gabinete.
O dia seguinte era sexta-feira e alguém bate à porta do escritório do tesoureiro.
- Entre…
- Dá licença senhor Tesoureiro.
- Diga homem…
- Sabe alguma coisa do Laurentino?
- Não… porquê? Deveria saber?
- É que ele hoje não apareceu…
- Não apareceu? Será que lhe aconteceu alguma coisa?
- Não sei, senhor…
- Na verdade ele ontem pediu-me se poderia ir hoje à sapataria. E eu disse que sim, mas nunca pensei que fosse coisa para demorar tanto tempo…
O outro ergue as sobrancelhas e bate com a mão na testa percebendo o erro. Finalmente diz:
-Senhor Tesoureiro… o Laurentino é de uma aldeia saloia chamada Sapataria, ali para os lados de Sobral de Monte Agraço. Foi lá que ele foi… não a nenhuma loja…
Durante os meus 37 anos 9 meses e 25 dias que estive na empresa cruzei-me com todo o tipo de colegas. Alguns passaram de meros colegas de trabalho a chefes. Outros tal como eu nunca tiveram uma mera hipótese de almejar outros caminhos.
De todos os chefes com que trabalhei o Herculano foi, quiçá, o pior de todos.
Trabalhei muito tempo ao lado dele como caixa. E digo que até como caixa ele era um mau exemplo já que escondia sempre os espetos das chapas de forma a que ninguém (mas essencialmente a chefia) percebesse o pouco que ele fazia.
Outras das suas péssimas características era a invulgar capacidade de nunca assumir culpa de nada. Se havia um problema no Serviço o Herculano descalçava as botas da culpa deixando que esta fosse se possível assumida por alguém.
Era aquilo que se pode chamar de um nojo de pessoa, sem nível, educação, formação e acima de tudo sem qualquer capacidade de bom senso. A única coisa que lhe interessava realmente era… dinheiro. Talvez por isso esteve na empresa até aos 70 anos.
Her
Naquele tempo cada serviço tinha um dossier enorme onde eram colocados de vez em quando as actualizações de normas internas associadas aos empregados. Esse dossier tinha o nome de “Manual de Pessoal”.
As actualizações eram enviados por um certo Departamento que requeria sempre a devolução das normas antigas. Ora acontece que foram enviados para um certo serviço chefiado pelo Herculano actualizações para serem colocadas no dossier.
Mas ele nunca o fez… Até que um dia um chefe de outros Departamento pegou no telefone e telefonou para o Herculano.
- Está Herculano… não recebeste aí actualizações do Manual de Pessoal?
Atrapalhado começou a gaguejar:
- Si… sim… Não sei… Talvez.
- Então recebes aí documentação e não sabes o que fazer?
O Herculano estava encurralado… De repente surge-lhe uma resposta que só dele:
O João Silva foi um contínuo que trabalhou comigo. Magro, muito devido aos seus problemas de estômago, era no entanto um colega bem divertido, tendo sempre um dito, uma chalaça para dizer sobre uma qualquer situação.
Naquele tempo tive de conduzir um carro da empresa pelas ruas da cidade. Nunca foi coisa que me preocupasse, mas reconheço que não esperava que fosse uma das minhas atribuições. Enfim… já passou!
Assim todas as manhãs, bem cedo, dirigia-me à garagem e esperava que dois colegas chegassem. O João era sempre um deles, mas o outro variava. Todavia de tarde íamos só os dois.
Era nesta hora que o João se mostrava mais aberto e mais jovial. Certa tarde de muito calor este colega vê uma jovem bem formosa a atravessar a passadeira enquanto o sinal se apresentava de cor vermelha. Sem que eu fizesse qualquer observação diz o João:
- Pulgas destas não saltam na minha cama…
Dei uma sonora gargalhada e fiquei com a frase gravada.
Outra vez estávamos a falar de preços de qualquer coisa e diz o contínuo:
- Mas isso custa para cima de um balúrdio…
Após uma breve pausa, continua:
- Mas eu não sei quanto é um balúrdio…
O João no seu melhor, pensei eu!
Mas a melhor estória dele ou sei lá desabafo, estaria reservada para aquela tarde plúmbea, lembro-me bem!
A entrada na garagem da nossa empresa era feita por uma porta larga de uma antiga igreja que em meados do século passado fora desativada e vendida pelo patriarcado à empresa. Assim sempre que eu chegava à porta da garagem apitava e aguardava que um segurança abrisse remotamente as grossas e pesadas portas.
Estava eu nesta espera quando reparei que na rua um casal de turistas olhava com espanto para a porta e para o que estaria prestes a acontecer que seria eu entrar na garagem com o carro.
João também reparou neles e logo declarou:
- Não admira que estejam espantados, na terra deles os carros não costumam ir à missa.
Quando entrei para a empresa o uso de gravata não era já obrigatório. Mas como o uso daquele acessório masculino nunca me incomodou coloquei-a muitas vezes. E sob este tema lembro-me de três relatos bem curiosos. Não conheci o colega da derradeira estória, mas aos outros conheci-os bem.
Gravata 1
O Almeida era um bom colega, quiçá pouco expedito no seu trabalho e daí talvez um tanto pateta. Trabalhava no mesmo Departamento que eu, mas noutra área.
Certo dia foram colocar perto do seu serviço uma máquina para triturar papel, nomeadamente para destruir alguma documentação sigilosa. A determinada altura o Almeida abeirou-se da máquina para destruir alguns papéis. Haviam-lhe dito:
- Carregas neste botão para ligar e depois metes os papéis nesta ranhura que a máquina puxa -os e destrói-os. Muito fácil!
Ora o Almeida pega nos seus documentos, liga o botão e introduz aqueles na ranhura. Só que a curiosidade matou o gato e o meu colega pretendeu perceber para onde iam os papéis triturados. Vai nisto aproxima-se em demasia, de tal forma que a gravata foi apanhada pela máquina.
Eis então a situação: a máquina a agarrar e a trucidar a gravata e o Almeida a puxar pelo pescoço… aflito. E quanto mais a máquina puxava mais ele fazia o gesto contrário. Resultado: quase sufocou.
Sorte teve ele pois alguém que ia a passar deu pela situação e desligou o equipamento! O que nós nos rimos…
Gravata 2
O Segismundo apareceu depois do almoço muito triste e aborrecido. O que nem era costume.
Alguém se abeirou dele e perguntou-lhe o porquê:
- Que se passa? Estás cá com uma cara…
- Nem me digas… Olha para isto – e apontou para uma valente nódoa na gravata – Nem sei como fiz isto…
A cabeça daquela malta da tesouraria estava já formatada para a brincadeira e assim o colega devolveu instantaneamente:
- Eh pá tenho ali uma coisa boa para tirar isso…
O outro nem acreditou:
- A sério? Consegues tirar esta nódoa da gravata?
- Claro. Vem comigo.
Lá foram os dois a caminho da secretária do outro.
Aí chegados o colega abre a gaveta, tira uma tesoura e num ápice decepa a gravata logo acima da nódoa. De tal forma que o outro nem teve tempo para recuar e evitar o corte.
- Pronto… já tens a gravata sem nódoa.
Segismundo ficou mudo e sem reacção. O que nós nos rimos…
Gravata 3
Esta é uma daquelas estórias a que eu não assisti, mas que ficaram para a posterioridade. Naquele tempo a gravata era um acessório exigido a todos os trabalhadores da casa independentemente da sua função.
Também as condições de trabalho não eram as melhores e no Verão a tesouraria era um forno, tal era a canícula.
O chefe era por sua vez um homem austero e ditador. Exigia que as suas ordens fossem cumpridas à risca e o uso permanente da gravata era uma delas.
Estava a ser um Verão áspero. O calor apertava e a tesouraria não fugia ao lume. À hora do almoço a malta nem pensava em sair para a rua, assim como assim, sempre se estaria melhor lá dentro. Estavam alguns em amena cavaqueira à espera que o tempo de almoço passasse quando um deles abre o colarinho da camisa e desaperta a gravata. Alguém o avisou:
- Olha se aparece aí o chefe? Estás feito!
- Estamos na hora do almoço, as portas estão fechadas. Portanto…
Ainda mal acabara de proferir estas palavras apareceu o dito chefe que vendo-o naqueles preparos logo arengou:
- O senhor não sabe que a gravata nunca se tira. NUNCA! Faça o favor de colocar a gravata.
Eis então que o colega e à frente de quantos estavam presentes, desapertou a camisa, despiu-a e depois colocou a gravata bem encostada ao pescoço.
A imagem era sui generis… alguém em tronco nu e de gravata posta.
Disse-lhe o colega para o chefe:
- Como vê e deseja a gravata está posta!
O tesoureiro perante a situação deu meia volta e saiu do local percebendo que tinha perdido a batalha.
Termino hoje esta primeira série de pequenos relatos sobre a minha vida de 37 anos, 9 meses e 25 dias de trabalho na empresa. Vou nos próximos tempos recuperar outras histórias mais burlescas e tentar (re)escrevê-las de forma a que possam serem lidas por todos.
O José Salvador
José da Silva Salvador foi o seu nome verdadeiro. Quando entrei na Tesouraria ele já tinha alguma idade, mas isso não obstou que não nos tornássemos bons amigos. Trabalhei com ele algum tempo. Era na caixa um homem muito cuidadoso temendo sempre perder dinheiro enquanto eu fui, geralmente, mais afoito.
A minha relação com o José era franca, aberta e por vezes um tudo nada… avançada. Adorava uma boa anedota e ria-se com gosto das que eu contava.
Não obstante a sua idade não estava, ainda assim, inibido de ser também vítima das brincadeiras do restante pessoal.
Mas a mais fantástica foi criada por mim num momento repentino.
O José reformara-se havia algum tempo e todas os dias dirigia-se ao refeitório para almoçar, já que era solteiro e vivia sozinho bem perto do local onde trabalhara toda a vida. Assim, naquela passagem da manhã para a tarde vi o José Salvador do outro lado da rua quando eu regressava do almoço.
Acresce dizer que naquele tempo a Baixa Pombalina estava repleta de muita gente trabalhadora e muitos poucos turistas… Outros tempos!
Reparo então no José e do lado de cá da rua envio-lhe uma saudação:
- Olá José! Boa tarde…
Ele percebe-me, acena e com um sorriso responde:
- Viva boa tarde!
E foi nessa altura que:
- Olha lá já perfilhaste a criança?
Não o deixando responder continuei em tom acusatório:
- A miúda já teve a criança… vê se és um pai como deve ser…
Coitado do José que perante esta minha acusação em tom alto no meio da rua e perante tantos desconhecidos nem soube o que responder. Apressou o passo...
Mais tarde num jantar falei-lhe daquela partida para lhe pedir desculpas pela brincadeira parva, mas ele na sua impecável bonomia, nem me acusou, dizendo simplesmente:
Num serviço com perto de 100 pessoas e onde diarimente se mexia com muito dinheiro havia sempre necessidade de desanuviar de algum stress.
Por isso e como já referi em textos anteriores as partidas sucediam-se ou então brincava-se com os próprias características de cada um. Um era o "fala-barato" porque nunca se calava, outro o "besunta" porque parecia que estava sempre a engraxar alguém ou o "caro director" porque se assim entitular fora da empresa tentando fazer-se daquilo que não era. Mas havia muitos mais. Eu próprio depressa fui brindado com o cognome de "vidrinhos" devido às minhas grossas lentes. Havia obviamente entre todos nós um que era gago. O Almada.
O Jesus Almada, de seu nome, tinha duas outras características, para além da sua gaguez que o distinguiam dos demais colegas: tinha uma opinião sobre tudo e tinha conhecimento rápido de todas as decisões da administração. Uma verdadeira agência noticiosa interna.
Era alguns anos mais velho que eu e depressa percebi que muitos faziam-no falar para o verem gaguejar sem que ele desse por isso.
Uma estória que ficou célebre foi aquela em que lhe perguntaram o que fora almoçar. Respondeu ele muito depressa:
- Fffffui comer cu... cu... cu...
- Comer o quê?
- Cozido à portuguesa... - respondeu num rompante. E todos riram.
Mas a estária mais curiosa assisti eu. O Jesus Almada fazia criação de canários e uma tarde toca a falar da sua criação. A meio da conversa diz:
- Tenho lá um ca... ca... canário que faz... qua... qua... qua...
Diz o Américo muito depressa e em tom de brincadeira:
- Um canário que faz qua qua não é um canário, é um pato.
Certo dia o Segismundo e o Amado compraram em simultâneo uma enciclopédia e pediram que os volumes fossem entregues no Serviço da Tesouraria.
Naquela manhã uma das recepcionistas liga para o Serviço a comunicar que haviam sido entregues duas encomendas iguais: uma para o Amado e a outra para Segismundo.
Amado foi à recepção e levou os dois pacotes para dentro, já que o colega estava de serviço numa caixa fora da Tesouraria. Abriu a dele, mostrou o que continha e logo ali se congeminou mais uma partida ao Segismundo.
Pegaram então na caixa da encomenda do Amado, colocaram lá dentro um volume pesado. Fecharam o pacote, endereçaram ao Segismundo e entregaram novamente na recepção com a indicação:
- Alice, guarde a encomenda. Quando o colega chegar ele virá buscá-la.
- Com certeza – aceitou a colega convicta que era um gesto normal.
Quando à tarde chegou Segismundo recebeu a indicação de ir até à recepção para levantar uma encomenda. Assim fez!
Já no Serviço, os colegas fizeram tudo para que Segismundo abrisse o pacote:
- Mostra lá o que compraste…
- Não – respondia o outro.
Vinha outro:
- O que tens aí? Pode-se ver?
- Não
E assim foi o resto da tarde.
Finalmente ao fim do dia Segismundo pegou no volume e levou-o para casa sem o abrir no Serviço.
No dia seguinte a vítima fez o que ninguém esperava não proferindo qualquer comentário do sucedido.
Todavia mais tarde veio a saber-se que no jantar daquela noite abriu feliz a encomenda e foi com anormal e estranha surpresa que recebeu uma lista telefónica volumosa da zona de Lisboa.
Quando estive na Tesouraria e sempre que nos deslocávamos com dinheiro na cidade íamos de carro da empresa com um motorista e um guarda, ambos devidamente armados, não fosse o demo tecê-las.
Deste modo havia uma relação muito próxima entre nós, os caixas, e eles, os guardas.
Certa manhã fui destacado para ir fazer caixa no Balcão na Avenida da República. Fui à casa-forte levantar o dinheiro que coloquei numa mala que tínhamos para o efeito. Notas de diversos valores, moedas e alguma documentação foram depois levados pelos seguranças até à carrinha.
Já na viatura falou-se de futebol e mais futebol, que era quase sempre o tema comum a todos os colegas.
O trânsito corria sereno com os sinais luminosos a gerirem a coisa. À entrada do cruzamento da Tomás Ribeiro com a Avenida Fontes Pereira de Melo o sinal ficou vermelho e a carrinha parou. À nossa frente os peões atravessavam a avenida, uns depressa outros mais lentos.
Estava um dia primaveril e o condutor levava o vidro aberto. De súbito alguém se aproximou da janela e disse:
- Mãos no ar, isto é um assalto.
Ainda não palavras não eram ditas e uma “fusca” estava encostada ao nariz do suposto assaltante. Fora o próprio motorista que a erguera.
- Calma, calma – disse o eventual atacante – estou a brincar!
- Eh pá… não voltes a fazer isso que pode acontecer uma desgraça – devolveu o motorista já de sorriso na boca.
Assustei-me no início para logo perceber que fora apenas uma brincadeira. Por fim tentei perceber quem era o atacante em conversa com os meus colegas.
- Este tipo é polícia e faz gratificados à nossa porta. E ao conhecer-nos quis pregar esta partida.
Na verdade fiquei naquele dia vacinado contra os colegas dos serviços de segurança. Percebi que não eram gente para brincadeiras… de gente crescida!
Os relatos anteriores aqui descritos, não obstante falarem de casos reais, carregaram consigo sempre algum humor. Porém a vida nem sempre é risonha. Foi o caso infra.
Quando conheci o Rafael este já se encontrava reformado. Conhecemo-nos na sala de convívio do refeitório da empresa, onde após o almoço tomávamos café ou jogávamos umas partidas de sueca.
A determinada altura ficámos parceiros e a coisa até corria menos mal. Havia só uma coisa que eu não apreciava de todo no meu parceiro: a forma como falava com o filho, também nosso colega quando este aparecia para cumprimentar o pai, usando sempre de uma linguagem baixa e demasiado ofensiva. Um dia cheguei mesmo a chamá-lo à atenção para o caso. Não gostou!
O Rafael fora um antigo chefe da empresa. De estatura baixa, apresentava quando o conheci uma certa curva descendente. Não sei se seria o peso dos anos ou o peso da consciência.
Entretanto deixei de jogar às cartas pois outros valores se levantaram. Pelo que soube a seguir ninguém mais pretendeu jogar com ele, nomeadamente os mais velhos. Até que um dia fui informado que o Rafael se suicidara perto de Santos em Lisboa.
Fiquei na altura muito pesaroso pela pessoa, até que alguém me disse:
- Não tenhas pena dele! Foi um crápula da pior espécie.
E contaram-me esta estória:
Vivia-se no tempo da ditadura e Rafael era um chefe tirano, não dando palavra a ninguém nem autorizando sequer aos subalternos a dirigirem-lhe qualquer conversa, a não ser que fosse trabalho.
Este chefe adorava anéis de ouro que usava em ambos os dedos anelares ou nos mindinhos. Sempre que chegava de manhã tinha o hábito de retirar as peças de ouro dos dedos e colocava-as na secretária mesmo à sua frente.
Só que certo dia deu por falta de um dos seus anéis. Procurou por todo o lado e de súbito olhou para um dos seus colaboradores e acusou-o:
- Foi você que me roubou o anel… Eu bem vi a forma como você olhou para ele.
- O senhor Rafael está enganado. Nunca faria uma coisa dessas. Sou um homem honrado e sério.
- Gatuno, malandro… hei-de apanhar-te…
Durante algumas semanas a acusação foi permanente. Entretanto alguns colegas tentaram ajudar na busca, mas esta foi infrutífera.
Até que certa manhã receberam a notícia que o colega acusado de roubo se suicidara. Rafael reagiu mal:
- Matou-se para não ter de devolver o anel…
O tempo decorreu e foi necessário fazer obras no serviço de tal forma que Rafael teve de mudar de sala e com ele foram também armários e secretária. Foi nessa altura que debaixo de um armário de arquivo foi encontrado um anel de ouro. O tal desaparecido!
Perante a falsa acusação Rafael e as consequências das suas acusações, o chefe apenas sugeriu que não se arrependia de nada.
A verdade é que a partir desse dia todos os colegas que trabalhavan debaixo da sua alçada pediram transferência. Mas foi Rafael que se transferiu.
O João Sabino foi um antigo colega da Tesouraria. Quando entrei na empresa era ele o chefe.
Afável, simpático, tinha sempre uma palavra de conforto para alguém que ao fim do dia assumia ter perdido dinheiro na caixa.
A sua postura tão cavalheiresca fez com que angariasse um título: “Gentle John”. Porém, diziam os que o conheciam melhor, que o João perdia toda a sua conhecida compostura ao volante do seu automóvel. Há até uma estória em que num sábado foram todos almoçar para perto de Arruda dos Vinhos numa quinta e no caminho alguém se queixou que o carro tinha qualquer coisa de estranho, ao que o condutor João respondeu que não deveria ser nada. Quando pararam tinha um furo… e uma jante desfeita.
Entretanto na tesouraria aconteceu um episódio muito curioso e que ficou célebre envolvendo Sabino e outros colegas.
Havia no Serviço uns armários com metro e meio de altura. Serviam essencialmente para arquivo, mas tendo em conta que se encontravam no corredor das caixas de pagamentos eram colocados em cima deles os comunicados sindicais ou nas Comissões de trabalhadores, alguma correspondência privada, um telefone de uso comum e o livro de ponto.
Em frente deles como já referi abriam-se pequenos gabinetes ou caixas como gostávamos de chamar.
Certo dia “Gentle John” estava a ler algum comunicado sindical ou quiçá a conferir quem assinava o livro de ponto… Sabe-se que estava de costas para o corredor. De súbito entra o Armando sempre no seu ar divertido e tagarela e vendo aquela figura de costas dá-lhe uma valente palmada na calva.
Apanhado de surpresa o chefe Sabino vira-se e dá de caras com Armando que vendo o chefe como vítima da sua brincadeira parva ficou sem pinga de sangue.
- Desculpe chefe João… Confundi-o com outro colega… Peço imensa desculpa…
Quando “Gentle John” se preparava para aceitar as desculpas eis que sai da caixa defronte o Alípio que naquele seu ar sempre sério pega numa nota de mil escudos e entrega-o a Armando:
- Tomas lá os mil paus da aposta…
O outro devolve:
- Qual aposta?
- Então não te lembras da aposta que fizemos em que se desses uma palmada no chefe eu teria de te dar 1000 escudos? Ei-los…
Armando tremia. O chefe nem sabia o que dizer. Alípio meteu a nota no bolso do colega.
- Chefe… isto é mentira, eu não apostei nada. Ele é que está a inventar.
João Sabino olhava para ambos e tentava perceber quem falaria mais verdade. Armando continuava:
- Chefe foi um acidente… Nunca apostaria nada com ele… Peço imensa desculpa mas não foi por querer…
Enquanto João Sabino coçava a careca atingida, Armando tremia e Alípio ria... sorrateiramente!