Opinião desnecessária?
Dizem que em Portugal se vive em liberdade. Mas sinceramente esta parece-me cada vez mais com aquela promoção de uma grande superfície, pois está sempre com desconto, mas nunca se encontra.
Dito isto a liberdade de ter opinião não deveria ser apanágio de uns iluminados que se perpetuam pelas televisões e jornais debitando chavões incongruentes e sem lucidez. Todavia o pior não são os comentadores sejam eles bons ou maus, mas os responsáveis directos pelos programas. Talvez por isso o Professor Medina Carreira nunca teve direito a horário nobre.
Ora bem... um amigo meu escreveu um texto de opinião para ser publicado em determinado jornal como já haviam sido outros textos, sempre bem aceites. A verdade é que este levou a chancela de... dispensável e assim o artigo de, repito, opinião ficou por publicar.
O texto está muito bem escrito e aponta para uma série de ideias assaz lúcidas e que são, mais ou menos, conhecidas do povo. O autor sentiu-se defraudado com a recusa e enviou-me o dito artigo de opinião no sentido de que eu lhe desse umaa opinião sincera. Li e reli não achando nada ofensivo para os visados, já que se trata de uma opinião e não mais que isso!
Com a devida autorização do autor segue infra o texto de opinião recusado!
HDT – os Herdeiros Disto Tudo
Houve um tempo ainda não distante em que Portugal era regido por um DDT – Dono Disto Tudo. Aquele a quem o cognome era atribuído nunca o assumiu, apesar de dele fazer largo uso prático. No entanto, o DDT foi apenas um caso particular dos generalizados Herdeiros Disto Tudo (HDT) nacionais. Se a sigla é diferente, e os segundos mais discretos e tolerados, não deixam de criar os mesmos problemas à nação.
A teoria reinante é a de que vivemos numa democracia moderna, com mérito e igualdade de oportunidades – ou no máximo com debilidades e margem para melhorias. Na prática, o cidadão comum sabe que a mobilidade social em Portugal funciona com a regularidade de um comboio da CP a que além das greves ainda se cortaram os cabos elétricos e se acionou o botão de alarme. O elevador social no nosso país é mais lenda do que realidade, mais aspiração do que prática. E, no entanto, continua a ser vendido como um facto indesmentível – um pouco como as promessas de investimento em saúde ou transportes públicos, que apesar de muito apregoadas, raramente deixam marca visível em quem deles poderia usufruir.
O caso da Spinumviva, que nos empurrou para eleições em maio, é exemplar. Não pelo sucesso ou insucesso da mesma, mas porque representa com clareza cristalina a herança como critério de gestão. A empresa em causa foi criada devido à rede de contactos do fundador e único trabalhador da empresa (à data), os seus préstimos empresariais, assim como à sua competência, conhecimentos, e especialização para “temas de alta tecnicidade”.
Quando já perspetivava a sua possível eleição como primeiro-ministro, o gestor deixa a empresa com mais clientes, com trabalho subcontratado a terceiros, com uma faturação nunca antes vista – em suma, com mais responsabilidade e uma complexidade significativamente maior - à mulher professora, educadora de infância de formação e aos filhos, estudante universitário e recém-licenciado de um curso não relacionado com os temas abordados pela empresa.
Além da já conhecida capacidade e flexibilidade dos gestores de topo nacionais para um dia trabalharem numa empresa pública, e no dia seguinte num regulador (relacionado ou não), e ainda em sequência numa empresa petrolífera/bancária/de energia, e depois num cargo ministerial - sempre com o mesmo nível de excelência - também a competência é hereditária, passada claramente nos genes e entre gerações, como a cor da pele e dos olhos, ou o formato do nariz.
Esta transferência de poder económico, como se fosse uma questão doméstica, ilustra bem o nosso bloqueio. Como nos bons velhos tempos da monarquia hereditária – e com a vantagem de que agora nem sequer se exige linhagem nobre ou provas dadas – basta o apelido.
O problema da hereditariedade é sistémico e vê-se por todo o lado. Há até quem se diga neto de sapateiro e a essa herança se cole, quando provavelmente acha que mules são jumentos.
O mundo académico, reduto da excelência intelectual, também desta tendência padece. Frequentemente e em alguns cursos, pela permanência de certos apelidos, é até difícil saber exatamente com quem se está a falar, sem o auxílio de uma árvore genológica. Caldo potente este, que somado à endogamia de muitas faculdades, gera as melhores e mais belas mentes pensantes e os influenciadores intelectuais nacionais. Claro que tudo isto é envolto numa linguagem de mérito, concursos públicos, júris independentes e outras ficções processuais de adormecimento coletivo. Afinal, quem melhor para ensinar do que o filho de quem já ensinava? O saber não ocupa lugar – mas saber, ocupa lugares.
Esta dinâmica coletiva, de que as elites beneficiam, impede que o talento floresça livremente, independentemente da origem social, da rede familiar ou do capital, e mina a ideia de que o esforço compensa.
Quando uma sociedade deixa de acreditar no mérito, começa a acreditar no cinismo. É por isso que o português comum desconfia de tudo: do político, do professor, do gestor, do jornalista. Porque viu demais. Porque conhece os filhos, os primos, os genros e os amigos do amigo. Porque sabe que a ascensão está reservada a quem já nasceu no andar de cima, por hereditariedade ou afinidade. E é também por isso que numa tarde de apagão elétrico se dirige a um supermercado para açambarcar, porque sabe que só pode confiar em si próprio.
A proliferação dos HDT não é apenas um fenómeno social; é também um cenário que alimenta a apatia nacional. Quem herda o poder, herda também a impunidade, o acesso, o estatuto, criando uma elite que não precisa de provar – apenas de manter-se à tona. Além de dinheiro e influência, é a perpetuação de uma cultura onde o privilégio é aceite como natural. Onde o lugar é garantido antes do concurso. Onde a entrevista de emprego é apenas uma formalidade.
Portugal é, neste aspeto, um país aristocrático sem títulos. Já não vivemos num tempo de duques nem barões, mas continuamos a ter o poder continuado, com presença simultânea na política, nas empresas e nas universidades. O cidadão comum que se atreva a aspirar a mais é convidado, subtilmente, a emigrar. E fá-lo – com competência e distinção – provando que o problema não está na falta de talento, mas na falta de espaço.
É verdade que em todas as sociedades existe alguma forma de continuidade geracional. Mas a diferença entre um país moderno e um país feudal está na abertura dos circuitos de poder. No acesso transparente. Na possibilidade de subir – e de cair – pelo mérito e pelas decisões próprias. Em Portugal, porém, o jogo parece viciado de origem. E isso é mais perigoso do que qualquer crise económica ou política, porque corrói por dentro a esperança e a confiança dos cidadãos nas regras do jogo, empurrando-os para a apatia ou a procura de soluções fáceis, imediatas ou disruptivas.
Ao jovem português médio, resta-lhe o Linkedin, dois mestrados, o Erasmus e um de vários estágios não remunerados. Ao filho certo, basta-lhe a assinatura no cartório para um lugar na direção da empresa. Mais do que nunca, a desmotivação e o desinteresse cívico são uma afirmação de posição. Porque o espanto é por ainda haver quem fique. E porque enquanto continuarmos entregues aos HDT, a nossa república será apenas isso: uma monarquia disfarçada de democracia.
Paulo Nunes