37a9m25d - #15
Estreia auspiciosa
A minha estreia como caixa teve um episódio que demonstrou duas coisas: uma é que há público que não tem qualquer ponta de educação, a segunda é que na Tesouraria os colegas defendia-nos sempre de gente imbecil.
Os novatos geralmente recebiam o dinheiro somente do caixa principal. Não fugi à regra e deste modo o Esteves entregou-me notas e moedas com a seguinte recomendação:
- Paga só com notas grandes, não faças trocos. Temos de colocar as notas de 5 contos em circulação e as pessoas têm de se habituar a elas...
Com esta indicação comecei a chamar os números de viva voz, pois no sítio onde estava não existiam chamadores eléctricos nem electrónicos. Também não era coisa que me causasse problema tanto mais que sempre fui dono de uma poderosa voz:
- CHAPA 26…
Alguém se aproximava do balcão, entregava-me a chapa redonda respeitante ao número chamado e eu perguntava:
- Quanto recebe?
- São … escudos!
Conferindo o valor retirava depois de uns cacifos as notas, recontava-as e entregava o numerário ao cliente. Tudo muito simples. Até que a meio daquela manhã chamei um número. A pessoa aproximou-se do balcão e eu perguntei:
- Quanto recebe?
- São 6 contos e vinte escudos!
Peguei numa nota de 5 mil escudos (tinha a figura de António Sérgio, lembram-se?), noutra de mil escudos e numa de 20 escudos. Recontei e entreguei o dinheiro. Diz-me então o cavalheiro:
- Não quero essa nota – e empurrou o dinheiro para dentro.
Percebi que referia-se à de 5 contos. Todavia retorqui:
- Lamento, mas não tenho ordens para pagar de outra maneira. Aqui tem o seu dinheiro.
De forma prepotente e malcriada pegou nas notas e atirou-as para dentro da minha caixa, enquanto dizia em tom áspero:
- Já lhe disse que não quero esse dinheiro.
Enervado pela minha falta de experiência e capacidade de resposta, peguei no dinheiro espalhado, devolvi a chapa ao cliente, agarrei na ordem de pagamento que tinha defronte e entreguei-a ao caixa principal que entretanto percebera que se passara algo de estranho.
- Este senhor não quer receber a nota de cinco contos… Podes fazer o pagamento, se fizeres favor'
Consciente da minha imaturidade para aqueles casos o Esteves disse-me:
- Deixa comigo.
Mais tarde soube o que se passou entre o cliente e o Esteves, mas de súbito tenho novamente o cavalheiro na minha frente após ter chamado o seu númetro de chapa que houvera devolvido.
Tive o mesmo discurso como se nada tivesse acontecido. O cliente recebeu o dinheiro e no fim disse-me:
- Peço muita desculpa pela minha atitude de há pouco. Fui muito incorrecto.
Espantado com o pedido de desculpas devolvi:
- Deixe lá, não se preocupe, está desculpado. Tenha um bom dia.
No entanto este acontecimento mexeu comigo e no fim do dia abordei o Esteves:
- O que se passou entre ti e o cavalheiro da manhã?
- Fácil… Eu conhecia-o muito bem… Ele é um coronel aposentado que fez serviço com o meu pai. E só lhe perguntei se na tropa as ordens não serviam para ser obedecidas. Ele, claro, calou-se.
Imaginei a cara do coronel perante a questão. Mas o Esteves continuou:
- E obriguei-o a receber na tua caixa e a pedir-te desculpas. Espero que o tenha feito.
- Pediu sim. Obrigado.
A minha estreia estava feita!