Amor tropical
O corpo esbelto e bem torneado de Regina era o tema de todas as conversas no povo. Chegara havia semanas acompanhada do pai Bernardo, um filho da terra que partira para terras de Vera Cruz havia mais de trinta anos e durante todo esse tempo jamais comunicara com a aldeia que o vira nascer. Regressara finalmente acompanhada pela filha de pele morena, queimada pelo sol tropical e longos cabelos loiros, tal qual a seara de trigo, que tantas vezes em gaiato ajudara a ceifar.
A jovem, era agora alvo de falatório aguçado e viperino. As mulheres quase todas viúvas, mal casadas ou mal amadas, respingavam com azedume palavras ásperas com o intuito de magoar pai e filha:
- Uma desavergonhada! Uma tentação do Diabo!
- Doidivanas é o que é! Que descaramento! Vir para aqui assim… naqueles propósitos…
E o assim correspondia a saias muito curtas, evidenciando um par de pernas bem desenhadas e acobreadas. A jovem, porém, não temia os ditos. Sorria, apenas. Havia muito tempo que se habituara a ser o centro perfeito dos homens e o imperfeito das mulheres.
Regina adorava passear pelos campos, repletos de flores silvestres. Só. Saía de casa manhã cedo e explorava com natural emoção locais e referências doa quais o pai sempre lhe falara. Não temia ninguém e muito menos o povo sereno da aldeia, não obstante as venenosas observações de que era alvo.
Os jovens rapazes sonhavam romances arrebatadores e paixões quentes e impossíveis com a jovem estrangeira. Todos lhe queriam conquistar o coração. Havia mesmo quem já imaginasse coisas…
Ora certa tarde de uma primavera luminosa o Alfredo entrou na taberna do Bilhas e anunciou com ar triunfante:
- Aquela já cá mora no "papo" do menino! - e batia com as mãos no peito inchado.
Os outros desconhecendo a quem se referia o galã, perguntaram:
- Aquela quem?
- A brasileira…
- A brasileira? Mas que é que lhe fizeste?
- Ainda nada! Mas não tarda nada ides ver…
No pensamento dos amigos passou a imagem quase proibida da jovem nua e ao alcance da mão.
- Não acredito! – Afirmou com relutância Jorge.
- Então não acredites! Isso é contigo.
- Mas conta lá o que é que aconteceu.
Uma dúzia de olhos, ávidos de relatos mais coloridos, convergiu a atenção para o que Alfredo iria dizer.
Apanhado na sua própria arrogância e mentira, o jovem rapaz começou por coçar a nuca numa preocupação evidente. Pigarreou e finalmente avançou:
- Uma destas tardes andava eu à caça, lá para os lados da Pia Estreita…
- … mas agora estamos no defeso, se a Venatória te apanha… - cortou o Felisberto.
- Eh pá cala-te, deixa lá o rapaz falar – zangaram-se os outros.
- Pronto, pronto, não digo mais nada. Continua Alfredo…
- Ora com estava a dizer eu andava lá para os lados da Pia, quando vi ao longe uma figura toda jeitosa - e desenhou no ar com as mãos as curvas de um corpo.
Um coro de assobios soou na tasca. Continuou:
- Aproximei-me devagar e encontrei a brasileira envolta em silvas, picando-se e rasgando as mãos, pernas e braços. Então cheguei ao pé dela e perguntei-lhe calmamente: quer que eu a desamarre desse enredo?
Todos o miravam em silêncio, aguardando a resposta que a jovem teria dado:
- … tremia como varas verdes, parecia que lhe metia medo…
Estas últimas palavras haviam sido proferidas pela própria Regina que entrara na taberna com à-vontade e escutara as últimas fanfarronices de Alfredo. Este, num estalo de dedos, transformou-se na cor da cal. O ar zombeteiro e marialva fora substituído por um agitar demasiado nervoso.
O suor escorria testa abaixo deixando antever a agitação que o invadia. Os amigos que o rodeavam perceberam rapidamente o estado de espírito do outro e inclementes atacaram:
- Olha lá Alfredo foi mesmo assim como diz a Regina? Tremias que nem um pudim em dia de boda?
- Nem pensar! Ela é que está a exagerar!
- Mas tu disseste que ela estava no “papo”! Ou fui eu que ouvi mal?
A atrapalhação da última pergunta fez com que Alfredo abandonasse o café bufando e praguejando. Os restantes mantiveram-se na loja, riram do jovem gabiru e aproveitaram para conversar com a brasileira, que no seu linguajar doce ia deitando algumas achas nos corações daqueles jovens repletos de ideias e paixões apenas sonhadas.
- Vocês são uma gracinha! Mas aquele pobre partiu triste…
- Deixe lá Regina. Ele é um gabarola muito conhecido na aldeia e arredores. Já ninguém vai na conversa dele! Mas conta histórias engraçadas e nós gostamos de o ouvir…
A jovem ficou com os homens na taberna, tornando-se um deles. Ria alto, contava piadas, ouvia com atenção as dos outros e bebia cerveja naturalmente.
Devagar a aldeia foi-se habituando à presença da brasileira. A simpatia que irradiava acabou por ser contagiante e finalmente o povo aceitou a jovem tal como era. Visitava os idosos fossem ou não da família, ajudando-os em algumas tarefas caseiras, apaziguando alguns corações mais revoltosos.
Desde os acontecimentos na taberna que Alfredo fugia da bonita brasileira. Temia que esta o envergonhasse uma vez mais. Assim que chegava do trabalho recolhia-se a casa, ajeitava a horta que crescia nas traseiras, dedilhava um velho banjo que herdara de um avô, suspirava… De manhã pegava na velha motorizada e partia bem cedo para a fábrica. Porém foi a jovem Regina que o apanhou desprevenido um sábado à saída de casa, quando aperaltado se dirigia não sabia bem aonde, só sabia que estava farto de estar em casa fechado:.
- Oi como está você?
O rapaz deu um salto, pensou voltar para trás mas ganhou coragem e respondeu ao cumprimento:
- Estou bem! E a menina?
- Tudo numa boa. Me diga uma coisa, porque me evita?
Ele merecia aquele castigo.
- Eu peço imensa desculpa. Sou um parvo…
- Não é nada. Você não me fez mal algum. Foi só a si…
- É, sim… claro! – Alfredo tremia. Sentia-se desfazer-se na frente daquela bonita mulher. Parecia a do calendário que o Fernando expunha no velho barracão. Aqueles olhos verdes, o cabelo longo, o corpo perfeito…
A jovem sorriu. Tinha perfeita consciência das sensações que causava. Mas aquele rapaz era ainda muito ingénuo, não obstante a gabarolice das suas palavras. Por isso pegou-lhe na mão, puxou-o para si e beijou-o ternamente. Alfredo nem queria acreditar. Um sonho tornado realidade. Uma paixão tanto tempo alimentada de sonhos e desejos… E respondeu como pode e sabia ao ósculo feminino.
- Gostou?
- Eu… eu … - gaguejou – não sei o que dizer. Desculpe.
Regina riu. Pegou-lhe na mão e puxou-o para si.
- Eu gosto de você! Me quer?
Alfredo derretia-se. Tremia, tremia como estivesse perante uma fera e não duma mulher. As palavras nem saíam. A garganta travava a fala. A emoção do momento era demasiada para o jovem coração. Finalmente recompôs-se e perguntou:
- Isso é a sério? Não está a mancar comigo?
Regina voltou a sorrir e respondeu:
- Pateta, claro que não. Eu não brinco com os sentimentos dos outros…
- Quero sim menina e muito…
- Não me trate por menina. O meu nome é Regina Novais.
Meses depois casavam na velha capela da aldeia com a pompa e circunstância que a cerimónia obrigava. Ao sair de braço dado com a noiva, Alfredo piscou o olho matreiro aos amigos que o aguardavam na rua.
- Afinal ele sempre a caçou… um sortudo! - comentou com os companheiros, quase em surdina, o Jorge.
Nesse instante alguém ouviu e respondeu também em surdina:
- Hum! Creio mais que foi ela que o caçou…
Os jovens olharam para trás e deram de caras com Bernardo, que sorria… feliz.