Após uma peregrinação é costume ainda viver uns dias assim em modo caminhante, tentando no dia a dia perceber qual o meu caminho.
Porém a vida, tal como ela é, não se preocupa com esta minha busca e vem logo com desafios e propostas que me obrigam a sair do meu conforto interior e partir em busca de soluções.
Ao invés do que já ouvi, um peregrino não é um ser estranho ou alguém em busca da santidade. O verdadeiro peregrino é aquele que se propõe viajar, sem rodeios nem temores, ao interior do seu espírito. Mesmo que muitos à partida julguem estar imunes ao que vai acontecendo ao seu redor, a verdade é que no fim algo mudou. E quase sempre para melhor.
Uma vez alguém descrente, perguntou-me: porque peregrinas?
A minha resposta naquele momento foi um tanto difusa sem grandes certezas. Todavia tempos mais tarde consegui obter uma resposta a preceito e num encontro fortuito aproveitei para lhe responder.
Hoje quando alguém me coloca a mesma questão tenho sempre uma resposta pronta:
- Porque não?
Ficam assim entre o espanto e a incerteza de que era esta a verdadeira resposta que esperavam escutar. Com a deste ano já fiz onze peregrinações a Fátima e pretendo fazer pelo menos uma a Santiago. Assim Deus me força e saúde.
Termino aqui esta série de textos... peregrinos. Na escrita e na alma.
Nenhuma foi igual às outras, porque nenhum de nós é igual a si mesmo durante todo o dia!
Após cinco dias a caminhar por trilhos, veredas, estradas, a tentar ultrapassar as poças de água ou os terrenos lamacentos eis que regresso à cidade... louca.
Ainda assim o trânsito pareceu mais sereno que os outros dias, talvez fosse da hora mais madrugadora. Quanto aos resto... a perfeita loucura.
A cidade é um local pouco recomendável, assumo! Muitas pessoas, mas poucos seres humanos. Parecem todos ser pequenas máquinas que correm apressados para o seu trabalho.
A maioria nem é para trabalhar muito, que isso é coisa que não se faz. Prefere-se a maledicência ou a coscuvilhice...
No Metro já ninguém lê um livro. E a culpa é dos telemóveis que destronaram por completo as outras leituras. No transporte substerrâneo dois jovens carregavam consigo cinco simpáticos cães, mas que cheiravam mal. Imagine-se agora um destes canídeos num restaurante?
Parti ainda hoje para a Beira Baixa. Mais uma vez.
Local onde o trabalho nunca acaba, mas onde consigo ter alguma paz.
Saímos de Minde cedo como nos outros dias. Previam-se 17 quilómetros até à Mãe Santíssima, quase sempre em estradas de terra batida, para terminar em alcatrão.
O caminho fazia-se devagar tal era o esforço da maioria dos peregrinos ao fim de quase 150 quilómetros. Acabei esta minha viagem a conversar com o Padre J. que me escutou... escutou... escutou...
É preciso ser-se um enormíssimo pastor para conseguir levar este rebanho pelas estradas, em busca do consolo de Virgem Maria.
Uma peregrinação não pressupõe somente andar... Há nesta opção, que nos é tão familiar, um misto de sentimentos, onde o espírito de sacrifício de cada peregrino, a teimosia, a persistência e a verdadeira fé se conjugam numa espécie de mistura rica, muito bonita e assaz sensível.
Chegou-se à Cova da Iria ainda antes do almoço. Coletes amarelos entregues, surgiu então uma mancha laranja, já que cada peregrino foi brindado com um bonito camisolão, referente a esta peregrinação. Rezámos o terço ainda antes de entrar no santuário. Por fim...
Ao centro a velha Basílica, para do lado esquerdo se observar a Capelinha das Aparições. Fomo-nos aproximando em silêncio. Um silêncio que teve o condão de fazer despertar muitas lágrimas. Duzentos metros.... cento e cinquenta... cem...
A cadência dos passos é sempre a mesma. Ninguém corre nem recua. Há ali uma atracção serena por aquele espaço.
Cinquenta metros... trinta... vinte. Há quem olhe para aquela mancha colorida de forma estranha. Outros mais habituados, nem ligam.
Por fim a imagem de Nossa Senhora envolta numa redoma de vidro, ali a aguardar por todos nós. Pelos nossas dores, aflições, desejos e orações. São torrentes de lágrimas sentidas, choradas com fervor, partilhadas com os outros peregrinos.
Veio o almoço seguida da eucaristia onde a homília foi quase toda substituída por partilhas dos que viveram esta aventura. A maioria dos que falaram foi a primeira vez que peregrinaram!
Peregrinar resume-se neste permanente dar de mão, naquela questão ao que caminha sozinho "estás bem?", nas muitas horas de partilhas nos chãos desses pavilhões, dos banhos mal tomados.
Peregrinar é assim tudo isto e muito, muuuuuuuuuuuuuuito mais.
O problema é que tivemos de atravessar uma serra íngreme e que não foi fácil.
A bem da verdade esta madrugada não foi um grupo de peregrinos que saiu das Fráguas mas um grupo de "zombies", tal a forma como todos estavam ao fim de 90 quilómetros.
Após laudes e reforço alimentar eis que entramos numa aldeia a rezar a via sacra. Textos duros. Muito duros que deixaram muitos peregrinos a chorar.
As palavras de uma mãe que vê o seu filho a ser crucificado na cruz não são fáceis. Nem de ouvir e muito de dizer, especialmente por uma mãe.
Mas a peregrinação é tudo isto: um misto de alegria da caminhada em Cristo e a consciência da paixão de Jesus.
Amanhã chegaremos a Fátima.
E teremos Mãe Santíssima à nossa espera.
Adenda: A eucaristia de hoje decorreu, já muito tarde, no recinto onde os peregrinos dormiram, numa profunda demonstração de como Jesus Cristo está em todo o lado.
Acordamos novamente muito cedo. Ainda por cima a hora mudara...
Tralha arrumada, pequeno almoço tomado e eis-nos a caminhar debaixo de uma chuva miudinha e muito, muito fria.
Mas peregrino que se prese não se atemoriza com a intempérie e parte para o caminho repleto de coragem e fervor.
Onze quilómetros palmilhados e parámos em Sobral de Monte Agraço, onde numa pastelaria confortámos o estômago com cafés e pastéis de feijão. Uma delícia...
Depois a oração das laudes rezadas em conjunto. O almoço seria a próxima paragem.
Pelo caminho surgiram as primeiras questões formuladas pelo padre J. A nossa alma começa a perceber que nem tudo é como gostaríamos. E que a fé advém da palavra.
Ficou então no ar uma questão: qual a palavra que define a nossa fé?
Temos mais 90 quilómetros para encontrar a resposta.
Lá fora a chuva cai com violência. Receio que amanhã o dia acorde desta maneira o que significará que o início da caminhada será literalmente baptizada. Não com água benta, mas com esta água que fez falta durante tanto tempo.
Ultimei as coisas. A comida para amanhã, algumas bebidas, diversos utensílios que podem vir a ser necessários.
Preparo também uns textos para estes dias de ausência referentes a esta caminhada que tentarei à noite actualizar.
Andamos durante um ano a acumular lixo dentro de nós, que é chegada a hora de lavarmos a nossa alma e o nosso coração.
Por fim a quem aqui simpaticamente me vem ler, peço desculpa por estes dias de ausência. Quarta feira, se tudo correr bem, já cá estarei.
Certo dia em plena Baixa Pombalina eu e a minha mulher fomos abordados por um jovem que após algumas questões nos levou para um gabinete onde falámos sobre... férias! Bom assunto...
A verdade é que o tema não eram férias verdadeiras, mas unicamente a tentativa de vender férias partilhadas. Após duas horas chatas e aborrecidas abandonei o local sem adquirir nada.
As empresas deste sector mudaram entretanto de estratégia e passaram a atacar os eventuais futuros clientes através de um telefone fixo, quase sempre associando um prémio como chamariz.
Ora um sábado estava eu descansado em casa quando tocou o telefone. Atendi, era uma voz feminina e seguiu-se o seguinte diálogo:
- Boa tarde, estou a falar com... (disse o meu nome)
- Exactamente. Quem fala?
- Sou a ...(disse o nome dela) e estou a falar da empresa... (deu o nome da empresa). Conhece?
- Não!
- A razão deste telefone é para lhe comunicar que acaba de ganhar um prémio...
- Oh óptimo - respondi eu (ela não reparara no meu sorriso sarcástico!).
- Mas este prémio terá de ser levantado no dia... (disse o dia) até às... horas (referiu as horas)!
O meu silêncio manteve-se inalterado e deste modo do outro lado perguntaram:
- Ainda aí está?
- Sim sim...
- Podemos contar consigo então?
Foi a vez de vender a minha ideia:
- Bem... para já agradeço o prémio que naturalmente não mereço...
- Com certeza que merece... - interrompeu.
Continuei:
- Neste mundo nada é de borla, minha senhora. Tudo tem um preço. Depois gostaria de saber como descobriram o meu número - calei-me para que ela respondesse.
- O seu número foi escolhido à sorte na lista telefónica.
- Mas como não participei em nenhum concurso não me sinto em condições justas de receber tal prémio.
- Ah mas o prémio está aqui guardado para si...
- Minha senhora... - a minha anormal calma provavelmente desorientou-a - Graças a Deus não necessito de nada, tenho tudo. Mas como não pretendo ser desagradável para a vossa empresa peço que envie, na próxima segunda feira, o prémio para a Santa Casa da Misericórdia de ... (disse o nome da povoação), pois eu ligarei para a Instituição a avisar da vossa entrega.
Desta vez o silêncio veio do outro lado da linha.
- Ah... não pode ser assim, tem de ser o senhor a vir cá levantar.o prémio.
- Minha senhora... na segunda feira vou pedir a alguém da Santa Casa que vá à sua empresa levantar o prémio por mim. Diga lá então a morada se fizer favor?