Crónica de uma Peregrinação a Fátima
A Fé é uma casa permanentemente em construção.
Introdução
Faltava-me este ano o mote para a minha crónica sobre a peregrinação a Fátima a pé. Mas Deus sabia disso e colocou na boca do padre Jorge Anselmo as palavras que eu necessitava. Assim:
Quarta feira dia 28 de Abril
Saímos cedo do Casal de S. Brás, Amadora, ainda não eram sete da manhã. Após uma eucaristia profunda onde o Padre Fernando nos aconselhou a deixarmos as tralhas da nossa alma à porta da capela naquela madrugada estival, lá partimos alguns em passo estugado como o destino fosse logo ali e não a 150 quilómetros. E em D. Maria parámos. Juntos pela primeira vez em comunidades, fomo-nos conhecendo, percebendo o que nos levava a estar ali. Nova paragem e desta vez o silêncio com leituras associadas que se podiam recolher num pequeno roteiro entregue quilómetros antes. O dia vem quente, demasiado quente. A água jorra pelas gargantas sequiosas. Malveira vista no mapa parece estar ali encostada a Lisboa. Um passo parece ser suficiente. Porém o negro do alcatrão é mais duro e quando chegamos aos Bombeiros estamos com algum cansaço. Almoço e regresso à estrada. Em Jerumelo a revisitação a um velho amigo, Carlos Costa de seu nome e que todos os anos ali nos saúda no seu "Vão com Deus" profundo e sentido. Nova paragem e terço até Pêro Negro onde jantamos e dormimos.
Quinta Feira dia 29 de Abril
A manhã está mais fresca. Arrumada a tralha dentro das malas pegamos em duas sandes e leite ou sumo e regressamos ao caminho. Uma etapa que se prevê difícil até São Quintino. Uma igreja que é monumento nacional, muito bonita no topo de uma colina íngreme. Paramos para ler laudes retiradas do roteiro. O padre Jorge vai construindo no meu coração uma fé que até aqui ainda não tinha consciência. Quilómetros mais à frente nova paragem para reabastecimento. Neste caso uma bela surpresa: sandes (que belo pão!!!), bolos espectaculares, iogurtes, enfim muita comida... O café caiu que "nem ginjas". Logo de seguida a Via Lucis lida com calma enquanto a paisagem se desdobrava em diversos tons de verde. No caminho as saudades do Padre Jorge. Momentos muito, muito belos. Em Ribafria almoço e partida para Meca. Tive o privilégio de passar os quatro quilómetros a conversar com o Padre Carlos, visita inesperada. Uma mente brilhante que me ajudou a esclarecer muitas dúvidas. A missa na Basílica de Meca presidida por este padre teve o condão de me acordar para outros desígnios. No cimo já a caminho da Ota novamente o terço. A segunda etapa estava cumprida. A fé ía-se reconstruindo, devagar...
Sexta Feira dia 30 de Abril
A estrada é perigosa. Os camiões e os carros ligeiros passam a grande velocidade. Por vezes um buzinão aqui e ali vai alegrando os peregrinos que seguem em fila indiana. Após paragem para café abraçamos um caminho de terra batida longe da estrada. Nova paragem para leituras e reflexão sobre um texto bíblico. Fazemo-nos ao caminho até Tagarro onde o reforço alimentar nos esperava. Novo texto e momento de silêncio. É necessário interiorizar o que se leu. Reflectir profundamente. A estrada surge longa, despida de trânsito é certo, mas muito monótona. Após uma curva eis outra que surge. De recta em recta, de metro a metro lá vamos caminhando até à Asseiceira. Quando a placa aparece renasce a esperança e a alegria. Mas aquela recta final… Ui parece não acabar nunca. Almoçamos e saímos em comunidades para a estrada a fim de rezarmos o terço. Quando se acabou de rezar estávamos em Rio Maior. Após banhos massagens e jantar a eucaristia e regresso ao pavilhão onde os sacos cama nos esperavam.
Sábado dia 1 de Maio
Um pó de chuva caia de mansinho. As dúvidas surgiram: resguardo? sim ou não? Houve ambas as soluções rapidamente abandonadas para dentro dos carros de apoio. Nas Fráguas a primeira paragem. Num velho café onde a idade e o destreza do dono não nos deixava antever grande resposta. Depois reforçamo-nos espiritualmente com as laudes e partimos para Alcanede. Aqui houve reforço alimentar, leituras seguidas de silêncio. O almoço aguardava-nos em Amiais de Cima. De estômago cheio, pés tratados e a alma repleta fizemo-nos ao caminho. Uma breve paragem para reunir as comunidades e rezar o terço. Entrámos na pequena povoação de Monsanto a rezar o Rosário. No largo da igreja aguardou-se por todos e todos juntos partimos para o Covão do Feto. Aqui chegados vieram os banhos rápidos, o jantar desta vez em pratos de loiça (um luxo) e acabou-se com a missa na pequena capela do Covão do Feto que quase rebentava com tanto peregrino. A noite estava fria, muito fria.
Domingo dia 2 de Maio
A serra surgia como o maior obstáculo a ser ultrapassado. Mas todos passaram o desafio com maior ou menor dificuldade. Descida para Minde e nova subida para Covão de Coelho onde num pequeno parque se leram as laudes. O almoço seria a próxima paragem. Uma t-shirt vermelha colocava-nos na estrada todos juntos. Rezámos o terço e entrou-se no Santuário a acabar a oração a Maria. Na capelinha das Aparições ajoelhamo-nos e foi um ror de lágrimas. De alegria, de emoção, de fé. Chegados perto de Mãe Santíssima só se pode mesmo chorar. Tal é a força, tal é o mistério de Cristo. Na eucaristia final o Padre Fernando de regresso ao convívio dos seus paroquianos viu-nos felizes, limpos quase imaculados. Depois a primeira comunhão de dois peregrinos. Um momento emotivo… Já na rua os abraços e as despedidas. Cinco dias passados e vividos intensamente. A fé construíra a sua casa. Agora é necessário mantê-la. Que Deus nos ajude.
Reflexão final:
“Quanto mais sofro nesta peregrinação mais limpa fica a minha alma” este podia ser o resumo de toda esta jornada de fé. Porém é necessário mais que sofrimento físico e/ou psicológico. É preciso amar os outros, dar aos outros, despirmo-nos das nossas melhores vestes, viver com os outros, para tomarmos realmente consciência da nossa pobreza perante a obra de Deus.
A Fé é uma casa permanentemente em construção.